segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

CAPÍTULO 12

Jamie tinha leucemia e sabia disso desde o Verão passado.
No momento em que ela me falou da doença, o sangue escoou-se-me do rosto e um feixe de imagens vertiginosas percorreu trepidante a minha mente. Foi como se, naquele breve instante, o tempo tivesse subitamente parado e eu compreendesse tudo o que tinha acontecido entre nós. Compreendi por que quisera que eu participasse na peça: compreendi por que razão, depois de termo representado naquela primeira noite, Hegbert lhe sussurrara com lágrimas nos olhos, chamando-a seu anjo; compreendi por que razão parecia sempre tão cansado e porque se afligia com as minhas idas constantes lá a casa. Tudo se tornou absolutamente claro.
Por que quisera que o Natal no orfanato fosse tão especial...
Por que pensava que não iria para a universidade...
Por que me havia dado a sua Bíblia...
Tudo fazia perfeito sentido e, ao mesmo tempo, nada parecia fazer qualquer sentido.
Jamie Sullivan tinha leucemia...
Jamie, a querida Jamie, estava a morrer...
A minha Jamie...
- Não, não - murmurei-lhe - tem de haver algum engano... Mas não havia e, quando ela me falou de novo, o meu mundo esvaziou-se. A minha cabeça começou a andar à roda, e agarrei-me a ela com força para não perder o equilíbrio. Na rua, vi um homem e uma mulher caminhando na nossa direção, de cabeça baixa e as mãos nos chapéus para evitar que o vento os levasse. Um cão atravessou rapidamente a rua e parou para farejar os arbustos. Um vizinho em frente estava em cima de um escadote, desmontando as suas luzes de Natal. Cenas normais da vida de todos os dias, coisas em que nunca teria reparado antes, subitamente fazendo com que me sentisse irritado. Fechei os olhos, querendo que tudo aquilo desaparecesse.
- Desculpa, Landon - dizia ela continuamente. No entanto, era eu quem deveria pedir desculpas. Sei isso agora, mas a minha confusão impediu-me de dizer fosse o que fosse.
Lá no fundo, sabia que essa confusão não iria desaparecer. Abracei Jamie de novo, não sabendo que mais fazer, as lágrimas enchendo-me os olhos, tentando ser, mas sem conseguir, o rochedo de que ela precisava.
Choramos juntos na rua durante muito tempo, apenas a uma curta distância da casa dela. Choramos mais um pouco quando Hegbert abriu a porta e viu as nossas caras, sabendo imediatamente que o segredo deles tinha sido revelado. Choramos quando contamos à minha mãe, mais tarde, naquele dia. Abraçou-nos e soluçou tão alto que tanto a empregada como a cozinheira queria chamar o médico porque pensavam que alguma coisa tinha acontecido ao meu pai. No domingo, Hegbert anunciou a noticia à sua congregação, foi preciso ajudá-lo a voltar para o seu lugar antes mesmo de ter terminado.
Todos na igreja se quedaram silenciosos e incrédulos perante as palavras que tinham acabado de ouvir, como se estivessem à espera de um desfecho para alguma história horrível que ninguém queria acreditar que tivesse sido contada. Depois em uníssono, ao mesmo tempo, começaram as lamentações.
- É assim que ela avança - explicou. - Sentimo-nos bem, e depois, quando o corpo já não consegue continuar a lutar, começamos a sentir-nos mal.
Lutando contra as lágrimas, não podia deixar de pensar na peça.
- Mas todos aqueles ensaios... aqueles dias compridos... talvez não devesses ter...
- Talvez - atalhou, pegando-me na mão.
- Participar na peça foi o que me manteve saudável durante tanto tempo.

Mais tarde, disse-me que tinham passado sete meses desde que fora diagnosticado a doença. Os médicos tinham-lhe dado um ano de vida, talvez menos.
Hoje em dia, talvez pudesse ter sido diferente. Hoje em dia, poderia tê-la tratado. Hoje em dia, Jamie, provavelmente, teria sobrevivido. Mas isto passou-se há quarenta anos, e eu sabia o que isso queria dizer.
Só um milagre a poderia salvar.

Por que é que não me disseste?
Esta era a única pergunta que não lhe tinha feito, aquela em que tinha estado a pensar. Não dormira naquela noite e tinha os olhos ainda inchados. Durante toda a noite, passei por sucessivos estados de choque, negação, tristeza e raiva, desejando que aquilo não fosse verdade e rezando para que não passasse de um terrível pesadelo.
Sentamo-nos na sua sala de estar no dia seguinte, o dia em que Hegbert dera a notícia aos fiéis. Estávamos a 10 de Janeiro de 1959.
Jamie não parecia tão deprimida como eu pensara que ela fosse estar. Mas também já vivia com aquilo há sete meses. Ela e Hegbert tinham sido os únicos a saber e nenhum deles havia confiado em ninguém, nem em mim. Fiquei magoado com isso e com medo, ao mesmo tempo.
- Tinha tomado a decisão - explicou-me - de que seria melhor não dizer a ninguém e pedi ao meu pai para fazer o mesmo. Viste como as pessoas se comportaram hoje depois da missa. Ninguém era capaz de me olhar nos olhos. Se tivesses só alguns meses para viver, era isso que querias?
Sabia que ela tinha razão, mas isso não tornava as coisas mais fáceis. Pela primeira vez na minha vida, estava completamente sem saber o que fazer.

Nunca ninguém que me fosse próximo tinha morrido, pelo menos que me lembrasse. A minha avó morreu quando eu tinha três anos e não me lembro nada dela, ou do serviço religioso que se seguiu, ou até dos anos seguintes. Tinha ouvido histórias, claro, contadas tanto pelo meu pai como pelo meu avô, mas para mim não passavam de histórias. Era como ouvir sobre casos que poderia ter lido num jornal, sobre uma mulher qualquer que eu jamais tivesse conhecido. Embora o meu pai me levasse com ele ao cemitério quando ia pôr flores na campa da minha avó, nunca tive quaisquer sentimentos associados a ela. Sentia apenas pena das pessoas que ela tinha deixado para trás.
Ninguém da minha família ou do meu circulo de amigos alguma vez tivera de se confrontar com uma situação daquele gênero. Jamie tinha dezessete anos, uma criança, quase uma mulher, a morrer e ainda muito viva, ao mesmo tempo. Eu estava com medo, mais do que alguma vez estivera, não apenas por ela, mas por mim também. Vivia com o receio permanente de fazer alguma coisa de errado, de fazer alguma coisa que a ofendesse. Seria correto ficar zangado na presença dela? Seria correto continuar a falar do futuro? O meu medo tornava a conversa com Jamie difícil, embora ela fosse paciente comigo.
O medo, porém, fez-me perceber outra coisa, algo que tornava tudo aquilo ainda pior. Percebi que nem sequer a conhecera quando ela era ainda saudável. Tinha começado a passar algum tempo com Jamie apenas uns escassos meses antes, e sentia-me apaixonado por ela havia dezoito dias apenas. Esses dezoito dias pareciam a minha vida inteira, mas agora, quando olhava para ela, tudo o que conseguia fazer era perguntar-me quantos dias mais iríamos ter.
Na segunda-feira, Jamie não apareceu na escola e senti que ela nunca mais voltaria a percorrer aqueles corredores. Nunca mais a veria a ler a Bíblia sozinha à hora do almoço, nunca mais veria a sua camisola castanha deslocar-se por entre a multidão quando ela se dirigia para a aula seguinte. Terminara para sempre a escola, nunca iria receber o seu diploma...
Não me conseguia concentrar nas aulas naquele primeiro dia de regresso à escola depois das férias de Natal, escutando os professores a dizer-nos, uns a seguir aos outros, aquilo que a maior parte de nós já tinha ouvido. As reações foram semelhantes às que ocorreram na igreja no domingo. As meninas choravam, os rapazes baixavam a cabeça. As pessoas contavam histórias sobre ela como se ela já tivesse morrido. "Que podemos fazer?" Interrogavam-se em voz alta, e procuravam em mim as respostas.
- Não sei - era tudo o que conseguia dizer.
Saí da escola cedo e fui até à casa de Jamie, faltando às aulas depois do almoço. Quando bati à porta, Jamie recebeu-me da maneira como sempre fazia, alegremente e, assim parecia, sem qualquer preocupação no mundo.
- Olá, Landon - disse ela - mas que surpresa.
Quando se inclinou para me beijar, beijei-a também, embora tudo aquilo me desse vontade de chorar.
- O meu pai não está em casa neste momento, mas podemos sentar-nos na varanda se quiseres.
- Como é que podes fazer isso? - perguntei de repente. - Como é que consegues fingir que está tudo bem?
- Não estou a fingir que está tudo bem, Landon. Deixa-me ir lá dentro buscar o casaco e sentamo-nos cá fora a conversar, sim?
Sorriu para mim, à espera de uma resposta e, por fim, acenei-lhe com a cabeça, os meus lábios comprimidos. Jamie estendeu a mão e deu-me uma palmadinha no braço.
- Volto já - disse ela.
Dirigi-me para a cadeira e sentei-me. Jamie surgiu um momento depois, trazendo um casaco pesado, luvas e um chapéu para se manter quente. O vento de nordeste já tinha passado e o dia não estava nem de longe tão frio como durante o fim-de-semana. No entanto, era ainda demasiado frio para ela.
- Não foste à escola hoje.
Ela olhou para baixo e acenou com a cabeça:
- Eu sei.
- Nunca mais vais voltar? - Apesar de já saber a resposta, precisava ouvi-la da sua boca.
- Não - respondeu baixinho - não vou.
- Porquê? Já estás assim tão doente?
As lágrimas enchiam-me os olhos. Ela estendeu o braço e pegou-me na mão.
- Não. Hoje, por acaso, até me sinto muito bem. É só porque quero estar em casa agora de manhã, antes de o meu pai ter de ir trabalhar para o gabinete. Quero passar o máximo de tempo com ele.
Antes de morrer, queria ela dizer, mas não o fez. Senti náuseas e não consegui responder.
- Quando os médicos nos contaram pela primeira vez - continuou - disseram-nos que eu deveria tentar levar uma vida o mais normal possível durante o maior período de tempo que pudesse. Disseram que isso me ajudaria a manter as forças.
- Não há nada de normal nisto - disse amargamente.
- Eu sei.
- Não tens medo?
Esperava que ela respondesse que não, que dissesse algo de sensato como diria um adulto, ou que me explicasse que não podemos pretender compreender os desígnios de Deus.
Desviou o olhar.
- Tenho - respondeu por fim. - Estou sempre com medo.
- Então por que é que não ages como se o tivesses?
- Ajo. Só que o faço em privado.
- Por que não confias em mim?
- Não - respondeu - porque sei que também estás com medo.

Comecei a rezar por um milagre.
Parecia que estavam sempre a acontecer e lera acerca disso nos jornais. Pessoas a recuperar o uso das pernas depois de lhes ter sido dito que não voltariam a andar, ou sobrevivendo a um acidente horrível quando se havia já perdido toda a esperança. De tempos a tempos, um padre itinerante montava uma tenda nos arredores de Beaufort, e muita gente ia lá para assistir à cura de pessoas. Fui algumas vezes, e embora presumisse que a maior parte das curas não passavam de um engenhoso espetáculo de magia, uma vez que eu nunca reconhecia as pessoas que eram curadas, de vez em quando aconteciam coisas que nem eu conseguia explicar. O velho Sweeney, o padeiro aqui da cidade, andou na Primeira Guerra a lutar com uma unidade de artilharia atrás das trincheiras e os meses de bombardeamentos contra o inimigo deixaram-no surdo de um ouvido. Não fingia, ele realmente não conseguia ouvir nada e houve alturas, quando éramos crianças, em que tínhamos conseguido fugir com um pãozinho de canela graças a isso. Mas o padre começara a rezar fervorosamente e, por fim, colocou a mão num dos lados da cabeça de Sweeney. Sweeney deu um grito forte, fazendo com que as pessoas praticamente saltassem das cadeiras. Tinha uma expressão apavorada no rosto, como se o padre tivesse tocado com um atiçador em brasa. Mas depois sacudiu a cabeça e olhou em volta, proferindo as palavras Consigo ouvir de novo.
Nem ele próprio conseguia acreditar.
- Deus - dissera o padre enquanto Sweeney voltava para o seu lugar ­- pode fazer qualquer coisa. Deus escuta as nossas preces.
Assim, naquela noite, abri a Bíblia que Jamie me oferecera no Natal e comecei a ler. Já ouvira ler a Bíblia na catequese de domingo ou na igreja, mas para ser franco, apenas me lembrava dos pontos altos - as sete pragas ordenadas por Deus para que os Israelitas pudessem sair do Egito, Jonas a ser engolido pela baleia, Jesus caminhando sobre a água ou a ressuscitar Lázaro de entre os mortos. Também havia outros pontos altos. Sabia que praticamente em cada capítulo da Bíblia Deus fazia alguma coisa de espetacular, mas não os conhecia todos. Como cristãos, aprendíamos muito os ensinamentos do Novo Testamento, e não sabia absolutamente nada de livros como o de Josué, ou de Rute, ou de Joel. Na primeira noite, li o Gênesis todo, na segunda noite li o Êxodo. A seguir veio o Levítico, seguido dos Números e depois do Deuteronómio. Algumas partes lia mais devagar, especialmente quando eram explicadas as leis todas. No entanto, não era capaz de pousar o livro. Era uma compulsão que eu não compreendia inteiramente.
Era já tarde uma noite, e já estava cansado, quando, por fim, cheguei aos Salmos. Por um motivo qualquer, sabia que era aquilo que procurava. Já todos ouviram o vigésimo terceiro salmo, que começa, "O Senhor é o meu pastor, nada me falta", mas queria ler os outros, uma vez que nenhum deles devia ser mais importante
que os outros. Uma hora depois encontrei uma secção sublinhada que supus ter sido anotada por Jamie, porque significaria algo de importante para ela. Dizia assim:

A Vós clamo, Senhor.'
Ó meu rochedo não sejais surdo à minha voz,
Não suceda que, não me ouvindo,
Eu fique semelhante àqueles que descem ao abismo.
Ouvi a voz da minha súplica, quando clamo por Vós,
Quando levanto as minhas mãos para o Vosso santo templo.

Fechei a Bíblia com lágrimas nos olhos, incapaz de terminar.
De alguma maneira, sabia que ela a sublinhara para mim.

- Não sei o que fazer - disse entorpecido, olhando para a luz fraca do candeeiro do meu quarto. A minha mãe e eu estávamos sentados na cama. Aproximava-se o fim de Janeiro, o mês mais difícil da minha vida, e sabia que em Fevereiro as coisas apenas iriam piorar.
- Sei que isto é difícil para ti - murmurou ela - mas não há nada que possas fazer.
Não me refiro à doença de Jamie, sei que nada posso fazer em relação a isso. Refiro-me a Jamie e eu.
A minha mãe olhou-me, compreensiva. Estava preocupada com Jamie, mas também se preocupava comigo. Prossegui.
-É difícil conversar com ela. Quando olho para ela só consigo pensar no dia em que não poderei fazê-lo. Passo o tempo todo na escola a pensar nela, desejando poder vê-la naquele instante, mas quando chego a casa dela não sei o que dizer.
- Não sei se há alguma coisa que possas dizer que a faça sentir-se melhor.
- Então que devo fazer?
Olhou tristemente para mim e pôs o braço à volta do meu ombro.
- Amas a Jamie de verdade, não amas? - perguntou.
- Com todo o meu coração.
Nunca a vira tão triste.
- O que te diz o coração para fazeres?
- Não sei.
- Talvez - disse ela com ternura - estejas a esforçar-te de mais para o ouvir.

No dia seguinte, senti-me melhor na presença de Jamie, embora não muito. Antes de chegar a casa dela, prometera a mim mesmo nada dizer que a pudesse deprimir que tentaria conversar com ela como costumava fazer antes e foi exatamente isso que se passou. Sentei-me no sofá e falei-lhe de alguns dos meus amigos e do que eles andavam a fazer; pu-la a par do êxito da equipa de basquete. Disse-lhe que ainda não tido noticias da UNC, mas que esperava saber alguma coisa dentro das semanas seguintes. Disse-lhe que aguardava ansioso a cerimônia de formatura. Falei como se ela fosse voltar à escola na semana seguinte e sabia que me mostrava nervoso o tempo todo. Jamie sorria e acenava com a cabeça nas alturas apropriadas, fazendo perguntas de vez em quando. Mas penso que quando acabei de falar, ambos sabíamos que era a última vez que o fazia daquela maneira. Nenhum de nós se sentia bem com aquela conversa.
O meu coração dizia-me exatamente a mesma coisa.
Voltei-me de novo para a Bíblia, na esperança de que me ajudasse.
- Como te sentes? - perguntei dois dias depois.
Por esta altura, Jamie já tinha emagrecido mais. A sua pele começava a ganhar um tom ligeiramente acinzentado e os ossos das mãos começavam a tornar-se visíveis através da pele. Apresentava mais hematomas. Estávamos dentro de casa na sala de estar; lá fora fazia demasiado frio para ela.
Apesar de tudo isto, continuava linda.
- Estou bem - disse ela, sorrindo corajosamente. - Os médicos deram-me um remédio para as dores e parece que ajuda um pouco.
Vinha-a visitar todos os dias. O tempo parecia estar a desacelerar e a acelerar exatamente ao mesmo tempo.
- Precisas de alguma coisa?
- Não, obrigada, estou bem.
Olhei em volta da sala, depois novamente para ela.
- Tenho andado a ler a Bíblia - disse, por fim.
- Ah sim? - O seu rosto iluminou-se, lembrando-me o anjo que vira na peça. Não conseguia acreditar que tinham passado apenas seis semanas.
- Quis que soubesses.
- Fico contente por me teres dito.
- Li o Livro de Job ontem à noite - disse eu - em que Deus pôs à prova a fé de Job.
Ela sorriu e inclinou-se para me dar uma palmadinha no braço, a sua mão macia sobre a minha pele. Era uma sensação tão boa.
- Devias ler outra coisa. Nesse livro, Deus não está nos seus melhores momentos.
- Por que lhe teria Ele feito aquilo?
- Não sei - respondeu.
- Nunca te sentes como Job?
Ela sorriu, uma pequena cintilação nos olhos.
- às vezes.
- Mas não perdeste a tua fé?
- Não. - Sabia que não, mas acho que eu estava a perder a minha.
- Porque pensas que podes ficar melhor?
- Não - respondeu - porque é a única coisa que me resta.
Depois disso, começamos a ler a Bíblia juntos. Parecia o melhor a fazer, mas o meu coração, no entanto, dizia-me que talvez ou ainda mais alguma coisa.
à noite, fiquei acordado na cama, a pensar no assunto.00000000000

A leitura da Bíblia proporcionava algo em que nos podíamos concentrar. De repente, tudo começou a correr melhor entre nós, talvez porque não estivesse com tanto receio de fazer alguma coisa que a ofendesse. O que podia ser mais correto do que ler a Bíblia? Embora não conhecesse a Bíblia tão bem como Jamie, penso que ela apreciou o gesto. Por vezes, quando estávamos a ler, ela colocava a mão no meu joelho e escutava simplesmente à medida que a minha voz enchia a sala.
Outras vezes, sentava-me ao seu lado no sofá, olhando para a Bíblia, observando Jamie pelo canto do olho ao mesmo tempo. Encontrávamos uma passagem ou um salmo, talvez até um provérbio, e eu perguntava-lhe o que pensava dele. Tinha sempre uma resposta, e eu acenava com a cabeça, pensando no assunto. às vezes, era ela quem me perguntava o que eu achava, e eu também me esforçava, apesar de haver momentos em que fingia e tinha a certeza de que ela percebia.
- É isso o que realmente significa para ti? - perguntava, e eu coçava o queixo e pensava antes de tentar de novo. às vezes, porém, era por culpa dela que não conseguia concentrar-me, com a sua mão no meu joelho.
Uma sexta-feira à noite levei-a a jantar a minha casa. A minha mãe fez-nos companhia durante o prato principal, depois saiu da mesa e foi sentar-se no escritório para que pudéssemos ficar a sós.
Era bom estar ali, sentado com Jamie, e sabia que ela sentia o mesmo. Não saía muito de casa agora, e aquilo era uma mudança boa para ela.
Desde que me contou sobre a doença, Jamie deixou de usar o cabelo apanhado. Era tão deslumbrante ainda como da primeira vez em que a vira com ele solto. Ela estava a olhar para o armário da porcelana
- a minha mãe tinha um daqueles armários com luzes lá dentro quando estendi o braço por cima da mesa e lhe peguei na mão.
- Obrigado por teres vindo esta noite - disse eu.
Voltou novamente a sua atenção para mim.
- Obrigada por me teres convidado.
Fiz uma pausa.
- Como está o teu pai a aguentar-se?
Jamie suspirou.
- Não muito bem. Preocupo-me muito com ele.
- Ele ama-te muito, sabes?
- Sei.
- E eu também - disse eu, e quando o fiz, ela desviou o olhar. Ouvir-me dizer aquilo pareceu assustá-la de novo.
- Vais continuar a ir visitar-me a minha casa? - perguntou. - Mesmo mais tarde, sabes, quando...?
Apertei-lhe a mão, não com muita força, mas o suficiente para que ela soubesse que eu falava a sério.
- Enquanto quiseres que eu vá, eu lá estarei.
- Não precisamos continuar a ler a Bíblia, se não quiseres.
- Sim - disse baixinho - acho que precisamos.
Ela sorriu.
- És um bom amigo, Landon. Não sei o que faria sem ti.
Apertou-me a mão, retribuindo o favor. Sentada à minha frente, ela estava radiante.
- Amo-te, Jamie - declarei de novo, mas desta vez ela não teve medo. Em vez disso, os nossos olhos encontraram-se por cima da mesa, e vi os dela começarem a brilhar. Suspirou e desviou o olhar, passando a mão pelo cabelo. Depois voltou-se de novo para mim. Beijei-lhe a mão, sorrindo também.
- Também te amo - murmurou ela finalmente.
Eram as palavras que eu havia rezado por ouvir.

Não sei se Jamie falou a Hegbert do que sentia por mim, no entanto, duvido, pois a sua rotina não mudou em nada. Era seu hábito sair de casa sempre que eu lá ia depois das aulas e isso continuou. Batia à porta e ouvia Hegbert dizer a Jamie que ia sair e que estaria de volta dentro de duas horas.
- Está bem, Papá
ouvia-a sempre dizer. Em seguida, esperava que Hegbert abrisse a porta. Depois de me deixar entrar, abria o armário do corredor e retirava em silêncio o chapéu e o sobretudo, abotoando este último de cima a baixo antes de sair de casa. O sobretudo era antiquado, preto e comprido, como um impermeável militar sem fechos éclair, daqueles que estiveram na moda no principio deste século. Raramente falava diretamente comigo, mesmo depois de saber que tínhamos começado a ler a Bíblia juntos.
Embora ainda não gostasse que eu ficasse dentro de casa enquanto ele lá não estava, continuava a deixar-me entrar. Sabia que, em parte, isso se devia ao fato de ele não querer que Jamie se constipasse sentada na varanda, e a única alternativa era esperar em casa enquanto eu ali estivesse. Mas penso que Hegbert precisava de algum tempo sozinho também e essa era a verdadeira razão daquela mudança. Não me falou das regras da casa - pude divisá-las nos seus olhos da primeira vez que me permitiu ficar. Podia permanecer na sala de estar, apenas isso.
Jamie ainda se movimentava bastante bem, apesar de o Inverno estar horrível. Durante a última parte de Janeiro, soprou um vento frio que durou nove dias, seguido de três dias consecutivos de fortes chuvadas. Ela não tinha qualquer interesse em sair de casa com um tempo daqueles, mas, depois de Hegbert sair, eu e ela podíamos ficar na varanda durante alguns minutos para respirar o ar fresco do mar. Sempre que fazíamos isso, dava por mim a preocupar-me com ela.
Quando líamos a Bíblia, havia gente que batia à porta pelo menos três vezes por dia. As pessoas estavam sempre a aparecer, algumas com comida, outras apenas para cumprimentar. Até Eric e Margaret apareceram para uma visita e, embora Jamie não estivesse autorizada a deixá-los entrar, fê-lo de qualquer maneira. Sentámo-nos na sala de estar para conversar um pouco, os dois incapazes de a olhar nos olhos.
Estavam ambos nervosos e precisou de alguns minutos para, finalmente, chegarem ao assunto que ali os tinha trazido. Eric tinha vindo pedir desculpa. Disse que não conseguia imaginar por que é que, entre todas as pessoas, tudo aquilo tivera de acontecer a ela. Trazia também uma coisa para lhe dar e, colocou um envelope sobre a mesa, a sua mão a tremer. Tinha a voz estrangulada enquanto falava, as palavras vibrando-lhe com a emoção mais sentida que alguma vez o ouvira expressar.
- Nunca conheci ninguém com um coração tão grande como o teu - disse ele a Jamie, a voz perturbada - e apesar de não ter ligado a isso e de nem sempre ter sido simpático contigo, queria que soubesses o que sinto. Nunca me arrependi tanto de uma coisa na minha vida. - Fez uma pausa e limpou disfarçadamente o canto do olho. - És a melhor pessoa que por certo conhecerei em toda a minha vida.
Enquanto ele lutava contra as lágrimas e as fungadelas, Margaret já havia sucumbido às suas e soluçava sentada no sofá, incapaz de falar. Quando Eric terminou, Jamie limpou as lágrimas da face, levantou-se devagar e sorriu, abrindo os braços no que apenas podia ser descrito como um gesto de perdão. Eric aproximou-se dela espontaneamente, começando, por fim, a chorar enquanto ela lhe afagava ternamente o cabelo, sussurrando-lhe. Os dois abraçaram-se durante muito tempo, e Eric soluçou até ficar demasiado exausto para chorar mais.
Depois foi a vez de Margaret, e ela e Jamie fizeram exatamente a mesma coisa.
Quando Eric e Margaret estavam prontos para partir, vestiram os seus casacos e olharam para Jamie mais uma vez, com o se para a recordar para sempre. Não tinha qualquer dúvida de que queriam
recordá-la como ela estava naquele momento. Na minha opinião, estava linda, e sei que eles sentiam o mesmo.
- Força - disse Eric quando ia a sair. - Vou rezar por ti. Todos nós vamos rezar por ti. - Depois, olhou para mim e deu-me umas palmadinhas no ombro. - Tu também - disse, com os olhos vermelhos. Enquanto os via partir, sabia que nunca tinha sentido tanto orgulho deles.
Mais tarde, quando abrimos o envelope, descobrimos o que Eric tinha feito. Sem nos dizer o que quer que fosse, tinha recolhido mais de quatrocentos dólares para o orfanato.

Esperei pelo milagre.
Não aconteceu.
Em princípios de Fevereiro, o número de comprimidos que Jamie estava a tomar foi aumentado para a ajudar a combater as dores cada vez mais fortes que sentia. As doses reforçadas provocavam-lhe tonturas e, por duas vezes, caiu quando ia a caminho da casa de banho, uma vez bateu com a cabeça contra o lavatório. Depois disso, insistiu para que os médicos reduzissem os medicamentos e, com relutância, eles cederam. Embora ainda conseguisse andar normalmente, as dores que sentia intensificaram-se, e mesmo o simples gesto de erguer um braço lhe provocava esgares. A leucemia é uma doença do sangue, uma doença que segue o seu curso através de todo o corpo de uma pessoa. O coração vai continuando a bater até a doença o dominar implacavelmente.
Mas a doença enfraquecia-lhe também o resto do corpo, consumindo-lhe os músculos, tornando até as coisas simples mais difíceis. Na primeira semana de Fevereiro, perdeu quase três quilos, e pouco depois tornou-se-lhe difícil andar, a não ser que apenas por uma curta distância. Isto, claro, se ela conseguisse suportar as dores, o que passado algum tempo já não era possível. Regressou aos comprimidos, aceitando as tonturas no lugar das dores.
Continuávamos a ler a Bíblia.
Sempre que visitava Jamie, encontrava-a no sofá já com a Bíblia aberta, e sabia que agora o pai já tinha de a levar para ali ao colo se quiséssemos continuar. Embora ela não me falasse no assunto, ambos sabíamos exatamente o que isso queria dizer.
O tempo de que ainda dispunha era pouco, e o meu coração continuava a dizer-me que havia mais alguma coisa que eu podia fazer.

No dia 14 de Fevereiro, dia de S. Valentim, Jamie escolheu uma passagem da primeira carta aos Coríntios que tinha grande significado para ela. Disse-me que, se alguma vez tivesse oportunidade, queria que fosse essa a passagem a ser lida no seu casamento. Era isto o que dizia:

O amor é paciente, o amor é benigno, não é invejoso; o amor não se ufana, não se ensoberbece, não é inconveniente, não procura o seu interesse, não se irrita, não suspeita o mal; não se alegra com a injustiça, mas rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.

Jamie era a verdadeira essência dessa descrição.

Três dias depois, quando o tempo aqueceu ligeiramente, mostrei-lhe algo maravilhoso, algo que duvidava que ela tivesse visto antes, algo que eu sabia que ela quereria ver.
O Leste da Carolina do Norte é um pedaço belo e especial do país, abençoado com um clima temperado e, na maior parte, uma paisagem maravilhosa. Em nenhum outro lugar é isso mais evidente do que em Bogue Banks, uma ilha mesmo ao largo da costa, perto do local onde crescemos. Com trinta e nove quilômetros de comprimento e quase dois de largura, esta ilha é um acaso feliz da Natureza, estendendo-se de leste para oeste e abraçando a costa a oitocentos metros da praia. Os que ali vivem podem presenciar o espetáculo fantástico do nascer e do pôr do Sol o ano inteiro, ambos desenrolando-se sobre a extensão do majestoso Oceano Atlântico.
Jamie, muito agasalhada, encontrava-se de pé a meu lado no extremo do pontão Jron Steamer vendo cair aquela perfeita noite do sul. Apontei para o horizonte e disse-lhe para esperar. Reparei nas nossas respirações, a dela mais rápida do que a minha. Tive de apoiar Jamie enquanto ali permanecíamos - parecia mais leve do que as folhas de uma árvore caídas no Outono - mas sabia que ia valer a pena.
Finalmente a Lua, com as suas crateras, resplandecente, iniciou a sua aparente ascensão a partir do mar, projetando um prisma de luz através das águas que escureciam devagar, dividindo-se em mil partes distintas, cada uma mais bonita do que a outra. Exatamente ao mesmo tempo, o Sol encontrava-se com o horizonte na direção oposta, pintando o céu de vermelho, cor de laranja e amarelo, como se o Paraíso acima tivesse subitamente aberto as suas portas e deixado toda aquela beleza evadir-se dos seus confins divinos. O oceano transformava-se em prata dourada à medida que as cores volúveis se refletiam nele, as águas encrespando-se e cintilando com a mudança de luz, uma visão gloriosa, quase como no principio do mundo.
O Sol continuou a cair, projetando o seu brilho tão longe quanto a vista podia alcançar, antes de por fim, lentamente, desaparecer sob as ondas. A Lua continuava a sua vagarosa escalada, tremeluzindo em mil diferentes tons de amarelo, cada vez mais pálidos, antes de finalmente se tornar da cor das estrelas.
Jamie observou tudo isto em silêncio, o meu braço apoiando-a com firmeza, a sua respiração ofegante e fraca. Quando o céu, por fim, escureceu e as primeiras luzes cintilantes começaram a aparecer no distante firmamento do sul, tomei-a nos braços. Beijei-lhe delicadamente ambas as faces e depois, por fim, os lábios.
- É isto - disse eu - exatamente o que sinto por ti.





Uma semana depois, as deslocações de Jamie ao hospital tornaram-se mais regulares, se bem que ela insistisse em não querer passar lá a noite. - Quero morrer em casa - era tudo o que dizia. Dado que os médicos nada podiam fazer por ela, não tinham alternativa senão fazer-lhe as vontades.
Pelo menos, por enquanto.

- Tenho andado a pensar nestes últimos meses - disse-lhe.
Estávamos sentados na sala, de mãos dadas enquanto líamos a Bíblia. O seu rosto estava mais magro, o cabelo começando a perder o brilho. Os olhos, no entanto, aqueles meigos olhos azuis, estavam tão bonitos como sempre.
Penso que nunca antes vira alguém tão bonito.
- Também tenho andado a pensar ao longo deste tempo retorquiu.
- Tu sabias, desde o primeiro dia na aula de Miss Garber, que eu ia fazer a peça, não sabias? Quando olhaste para mim e sorriste?
Acenou com a cabeça.
- Sabia.
- E quando te pedi para ires comigo ao baile, fizeste-me prometer não me apaixonar por ti, mas sabias que eu ia apaixonar-me, não sabias?
Jamie tinha um brilho travesso nos olhos.
- Sim.
- Como é que sabias?
Encolheu os ombros sem responder, e permanecemos alguns instantes a observar a chuva batendo contra as vidraças.
- Quando te dizia que rezava por ti - disse ela, finalmente - de que é que achas que estava a falar?

O avanço da sua doença continuava, acelerando à medida que se aproximava o mês de Março. Jamie estava a tomar mais medicamentos para as dores e sentia-se demasiado enjoada para conseguir segurar muita comida no estômago sem vomitar. Estava a enfraquecer, e tudo indicava que teria de ir para o hospital para ficar, apesar de ela não querer.
Foi o meu pai e a minha mãe que mudaram tudo isso.
O meu pai tinha vindo de carro de Washington, partindo a toda a pressa apesar de o Congresso estar ainda reunido em sessão. Parece que a minha mãe lhe telefonou dizendo-lhe que se não viesse para casa imediatamente, podia ficar em Washington para sempre.
Quando a minha mãe lhe contou o que estava a acontecer, o meu pai disse que Hegbert nunca aceitaria a sua ajuda, que as feridas eram demasiado profundas, que era tarde de mais para fazer fosse o que fosse.
- Isto não tem nada que ver com a tua família, ou até com o Reverendo Sullivan, ou com o que quer que tenha acontecido no passado - disse-lhe ela, recusando-se a aceitar a resposta dele. - Trata-se do nosso filho, que, por acaso, está apaixonado por uma jovem que precisa da nossa ajuda. E tu vais encontrar uma maneira de a ajudar.
Não sei o que é que o meu pai disse a Hegbert, ou que promessas teve de fazer, ou quanto é que a coisa toda acabou por custar. Tudo o que sei é que de um momento para o outro Jamie se viu rodeada de equipamentos caros, foram-lhe proporcionados todos os medicamentos de que precisava e era vigiada por duas enfermeiras a tempo inteiro enquanto um médico vinha examiná-la várias vezes ao dia.
Jamie iria poder ficar em casa.
Naquela noite, chorei ao ombro do meu pai pela primeira vez na minha vida.

- Arrependes-te de alguma coisa? - perguntei a Jamie. Estava na cama sob as cobertas, um tubo aplicado a um dos braços providenciava o medicamento de que precisava. Tinha o rosto pálido, o corpo leve como uma pena. Mal conseguia andar e quando o fazia tinha de ser apoiada por outra pessoa.
- Todos nós nos arrependemos de alguma coisa, Landon - disse ela - mas eu tive uma vida maravilhosa.
- Como é que podes dizer isso? - reclamei, incapaz de esconder a minha angústia. - Com tudo o que te está a acontecer?
Ela apertou-me a mão, muito levemente, sorrindo-me com ternura.
- Isto - admitiu, olhando em volta do quarto - podia ser melhor.
Apesar das minhas lágrimas, ri-me, sentindo-me logo culpado por o ter feito. Devia estar a apoiá-la, não o contrário. Jamie continuou.
- Mas além disso, tenho sido feliz, Landon. Tenho mesmo. Tive um pai especial que me ensinou acerca de Deus. Posso olhar para trás e saber que não podia ter tentado ajudar mais as outras pessoas do que ajudei. - Fez uma pausa e olhou-me nos olhos. - Até me apaixonei e fui correspondida.
Beijei-lhe a mão quando ela disse aquilo, depois encostei-a à minha face.
- Não é justo - disse eu.
Ela não respondeu.
- Ainda estás com medo? - perguntei.
- Estou.
- Também estou - disse eu.
- Eu sei. Sinto muito.
- O que é que eu posso fazer? - perguntei desesperado. -Já não sei o que devo fazer.
- Lês para mim?
Fiz que sim com a cabeça, não sabendo, no entanto, se seria capaz de chegar à página seguinte sem desatar a chorar.
Por favor, Deus, diz-me o que fazer!
entanto, se seria chorar.

Estávamos sentados no sofá no escritório, o fogo ardendo na lareira diante de nós. Naquela tarde, Jamie adormecera enquanto eu lia e, sabendo que ela precisava de descansar, saí silenciosamente do quarto. Mas antes de o fazer, beijei-a com ternura na face. Foi um beijo inofensivo, mas Hegbert entrara no quarto naquele momento, e senti emoções conflituosas nos seus olhos. Olhou para mim, sabendo que eu amava a sua filha mas também que eu quebrara uma das regras da sua casa, ainda que não verbalizadas. Se ela estivesse bem, sabia que ele nunca mais me teria autorizado dentro de casa. Dirigi-me então sozinho à porta.
Na verdade, não o podia censurar. Descobri que o tempo que estava com Jamie esvaziava-me da energia para me sentir magoado com o comportamento dele. Se Jamie me ensinara alguma coisa durante aqueles últimos meses, foi que era através dos atos - não dos pensamentos ou das intenções que se julgavam os outros, e eu sabia que Hegbert me deixaria entrar em sua casa no dia seguinte. Estava a pensar em tudo isto sentado no sofá ao lado da minha mãe.
- Mãe? - disse mais tarde naquela noite.
- Sim.
- Acha que temos um objetivo na vida? - perguntei.
Era a primeira vez que lhe fazia uma pergunta daquele gênero, mas aqueles eram tempos extraordinários.
- Não tenho a certeza se percebo o que estás a perguntar disse ela, franzindo o sobrolho.
- Quer dizer - como é que se sabe o que se deve fazer?
- Estás a falar-me de quando estás com Jamie?
Acenei que sim com a cabeça, embora estivesse ainda confuso.
- Mais ou menos. Sei que estou a proceder bem, mas... falta alguma coisa. Passo o tempo com ela e conversamos e lemos a Bíblia, mas...
Fiz uma pausa e a minha mãe completou-me o pensamento.
- Achas que deverias estar a fazer mais?
Acenei afirmativamente.
- Não sei se existe mais alguma coisa que possas fazer, querido - disse ela delicadamente.
- Então por que é que me sinto desta maneira?
Aproximou-se um pouco mais de mim no sofá e olhamos para as chamas juntos.
- Penso que é porque estás com medo e sentes-te impotente e, embora estejas a tentar, as coisas continuam a tornar-se cada vez mais difíceis para os dois. E quanto mais tentas, mais inúteis parecem as coisas.
- Há algum modo de fazer com que deixe de me sentir assim?
Abraçou-me e puxou-me para mais perto dela.
- Não - respondeu baixinho - não há.

No dia seguinte, Jamie não conseguiu levantar-se da cama. Como estava agora tão fraca, até para andar apoiada, lemos a Bíblia no seu quarto.
Adormeceu passados alguns minutos.

Passou-se outra semana e Jamie estava cada vez pior, o seu corpo mais enfraquecido. Presa ao leito, parecia menor, quase como uma criança de novo.
- Jamie - implorei - que posso fazer por ti?
Jamie, a minha querida Jamie, dormia horas a fio agora, mesmo enquanto falava com ela. Não se mexia ao som da minha voz; a respiração era ofegante e fraca.
Sentei-me ao lado da cama e fiquei a observá-la durante muito tempo, pensando em como a amava. Segurei a mão dela junto ao meu coração, sentindo a magreza dos seus dedos. Parte de mim quis chorar ali mesmo mas, em vez disso, pousei de novo a sua mão na cama e voltei-me para a janela.
Por que razão questionei-me, é que o meu mundo se havia subitamente desmoronado daquela maneira? Porque tinha tudo aquilo acontecido a uma pessoa como ela? Perguntei-me se havia uma lição maior a tirar do que estava a acontecer. Seria tudo, como diria Jamie, simplesmente parte dos desígnios de Deus? Quis Deus que me apaixonasse por ela? Ou foi isso resultado da minha livre vontade? Quanto mais tempo Jamie dormia, mais sentia a sua presença a meu lado e, no entanto, as respostas àquelas perguntas não eram mais claras do que antes.
Lá fora, as últimas gotas de chuva da manhã tinham caído. Parecia que ia ser um dia escuro, mas naquele momento o sol do fim de tarde estava a romper por entre as nuvens. No fresco ar primaveril, vi os primeiros sinais da Natureza regressando à vida. As árvores lá fora estavam a brotar, as folhas esperando pelo momento certo para se desenrolarem e se abrirem para mais outra estação estival.
Na mesa de cabeceira ao lado da cama, vi a coleção de objetos que Jamie conservava mais perto do coração. Havia fotografias do pai, segurando-a quando era ainda criança, no seu primeiro dia no jardim de infância; havia uma coleção de cartões que as crianças do orfanato lhe haviam mandado. Suspirando, peguei neles e abri o cartão que estava no topo da pilha.
Escrito a lápis, dizia simplesmente:

Por favor fica melhor depressa. Tenho saudades tuas.

Tinha sido assinado por Lydia, a menina que adormecera ao colo de Jamie na véspera de Natal. O segundo cartão expressava os mesmos sentimentos, mas o que realmente me chamou a atenção foi o desenho que o rapaz, Roger, tinha feito. Tinha desenhado um pássaro, voando sobre um arco-íris.
Contendo as lágrimas, fechei o cartão. Não suportava olhar mais, e quando coloquei de novo a pilha sobre a mesa, reparei num recorte de jornal, ao lado do copo de água. Peguei no artigo e vi que era sobre a peça de Natal, publicado no jornal de domingo depois da segunda representação. Por cima do texto, vi a única fotografia que nos tinha sido tirada.
Parecia há tanto tempo. Aproximei o artigo de mim. Enquanto o observava, lembrei-me da maneira como me senti quando a vi naquela noite. Olhando de perto para a sua imagem, procurei algum sinal de que ela suspeitasse do que iria acontecer. Sabia que sim, mas a sua expressão naquela noite nada revelava. Em vez disso, via apenas uma alegria resplandecente. Por fim, suspirei e pus o recorte de lado.
A Bíblia estava ainda aberta na página onde eu interrompera a leitura e, apesar de Jamie estar a dormir, senti necessidade de ler mais um pouco. Acabei por descobrir outra passagem. Era isto que dizia:

Não digo isto como quem manda. mas para provar; comparando-a à dos outros, a sinceridade do vosso amor.

As palavras trouxeram-me as lágrimas de novo e, no momento em que ia começar a chorar, o seu significado tornou-me subitamente claro.
Deus tinha, finalmente, respondido à minha pergunta e, de repente, soube o que tinha a fazer.

Não podia ter chegado à igreja mais depressa, mesmo de carro. Meti por todos os atalhos possíveis, atravessando a correr os quintais das casas, saltando cercas, e atravessando uma garagem, e saindo pela porta do lado. Tudo o que aprendera sobre a cidade quando criança foi aproveitado naquele momento, e apesar de nunca ter sido grande atleta, naquele dia estava imparável, impelido pelo que tinha de fazer.
Não me preocupei com o aspecto que teria quando lá chegasse porque suspeitava que Hegbert também não se importaria. Quando entrei, por fim, na igreja, reduzi o passo, tentando recuperar o fôlego enquanto me dirigia para as traseiras, na direção do seu gabinete.
Hegbert olhou para cima quando me viu e percebi por que é que ele ali estava. Não me convidou a entrar, desviou simplesmente o olhar, mais uma vez em direção à janela. Em casa, lidava com a doença da filha fazendo limpezas e arrumações quase obsessivamente. Ali, porém, os papéis estavam espalhados pela secretária, os livros dispersos pelo gabinete como se ninguém o tivesse arrumado há semanas. Percebi que aquele era o lugar onde ele pensava em Jamie; aquele era o lugar para onde Hegbert vinha chorar.
- Reverendo? - chamei baixinho.
Não respondeu, mas entrei de qualquer modo.
- Gostaria de estar sozinho - resmungou.
Estava com um aspecto velho e exausto, tão estafado como os israelitas descritos nos Salmos de David. Tinha o rosto caído, e o cabelo tornara-se mais ralo desde Dezembro. Até mais do que eu, talvez, ele tinha de manter o ânimo na presença de Jamie, e a tensão que isso provocava estava a esgotá-lo.
Fui direito à sua secretária, e ele olhou-me de relance antes de se voltar de novo para a janela.
- Por favor - disse-me, num tom derrotado, como se nem tivesse forças para me confrontar.
- Gostaria de falar consigo - insisti. - Não o incomodaria se não fosse muito importante.
Hegbert suspirou, e eu sentei-me na cadeira onde me tinha sentado antes, quando lhe perguntara se ele me deixaria levar Jamie a jantar fora na véspera do Ano Novo.
Escutou-me enquanto eu lhe disse o que tinha em mente.
Quando terminei, Hegbert virou-se para mim. Não sei o que estava a pensar, mas felizmente não disse que não. Em vez disso, limpou os olhos com os dedos e voltou-se para a janela.
Até ele, penso eu, ficara demasiado chocado para poder falar.

Corri novamente, mais uma vez sem me cansar. O meu objetivo dava-me a força de que precisava para continuar. Quando cheguei a casa de Jamie, entrei de rompante pela porta sem bater, e a enfermeira que estava no quarto dela veio cá fora ver o que causara aquele rebuliço. Antes que ela pudesse falar, falei eu.
- Ela está acordada? - perguntei, eufórico e apavorado ao mesmo tempo.
- Está - respondeu a enfermeira cautelosamente. - Quando acordou, quis saber onde você estava.
Pedi desculpa pelo meu aspecto desalinhado e agradeci-lhe. Depois perguntei-lhe se não se importava de nos deixar a sós. Entrei no quarto de Jamie, encostando a porta atrás de mim. Ela estava pálida, muito pálida, mas o seu sorriso deixou-me perceber que ainda continuava a lutar.
- Olá, Landon - disse ela, a voz fraca - obrigada por teres voltado.
Peguei numa cadeira e sentei-me perto dela, tomando a sua mão na minha. Vê-la ali deitada fez-me sentir alguma coisa a apertar-se com força no fundo do meu estômago, fazendo quase com que me apetecesse chorar.
- Estive aqui mais cedo, mas estavas a dormir.
- Eu sei... Desculpa. Parece que já não consigo evitá-lo.
- Não faz mal, de verdade.
Ergueu ligeiramente a mão de cima da cama, e eu beijei-a, depois inclinei-me para a frente e beijei-lhe a face também.
- Amas-me? - perguntei-lhe.
Ela sorriu.
- Sim.
- Queres que eu seja feliz? - Enquanto lhe fazia a pergunta, senti o coração começar a acelerar.
- Claro que quero.
- Fazes-me um favor, então?
Ela desviou o olhar, a tristeza atravessando-lhe as feições.
- Não sei se ainda consigo.
- Mas se pudesses, fazias?
Não consigo descrever satisfatoriamente a intensidade daquilo que estava a sentir naquele momento. Amor, raiva, tristeza, esperança e medo, redemoinhando juntos, aguçados pelo nervosismo que sentia. Jamie olhou curiosa para mim, e a minha respiração tornou-se mais fraca. De repente, sabia que nunca sentira tanto por uma pessoa como naquele momento. Enquanto a olhava nos olhos, a simples compreensão desse fato fez-me desejar pela milionésima vez poder fazer com que tudo aquilo cessasse. Se tivesse sido possível teria dado a minha vida pela dela. Queria falar-lhe dos meus pensamentos, mas o som da sua voz silenciou subitamente as emoções dentro de mim.
- Sim - respondeu por fim, a voz fraca mas de alguma forma ainda cheia de esperança. - Fazia.
Controlando-me por fim, beijei-a de novo, depois levei a minha mão ao seu rosto, passando ternamente os dedos pela sua face. Maravilhei-me com a suavidade da sua pele, a doçura que vi nos seus olhos. Mesmo naquele momento, ela era perfeita.
Comecei de novo a sentir um nó na garganta, mas como disse, sabia o que tinha de fazer. Já que tinha de aceitar que não estava ao meu alcance poder curá-la, o que queria era dar-lhe algo que ela sempre desejara.
Era o que o meu coração me dissera para fazer há muito tempo.
Jamie, compreendi então, já me tinha dado a resposta de que estivera à procura, que o meu coração precisara de encontrar. Dera-me a resposta quando estávamos sentados à porta do escritório de Mr. Jenkins, na tarde em que lhe fomos falar da peça para os órfãos.
Sorri ternamente, e ela retribuiu o meu afeto apertando-me levemente a mão, como se confiasse em mim e no que eu estava prestes a fazer. Encorajado, inclinei-me para mais perto dela e respirei fundo. Foram então estas as palavras que saíram de dentro de mim.
- Casas comigo?

Um comentário:

Elexandra Martins disse...

Este capítulo passa a idéia de uqe Jamie não sobreviveu à doença; entretanto, sinto-me confusa pela froma como Landon termina o livro: acreditando em milagres.