segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

CAPÍTULO 7

Num dos primeiros dias de Dezembro, pouco mais de duas semanas após o começo dos ensaios, o céu estava escuro e invernoso quando Miss Garber nos deixou sair e Jamie perguntou se eu não me importava de a acompanhar a casa. Não sei por que razão queria que eu a acompanhasse. Beaufort não era propriamente um foco de criminalidade na altura. O único homicídio de que alguma vez ouvira falar tinha acontecido seis anos antes quando um homem foi esfaqueado à saída da Maurice's Tavem, por acaso um lugar freqüentado por pessoas como Lew. Foi um momento difícil, esse. Durante cerca de uma hora, houve grande agitação e os telefones retiniam por toda a cidade, enquanto as mulheres dominadas pelo nervosismo se interrogavam sobre a possibilidade de um lunático desvairado começar a rondar as ruas atacando vítimas inocentes. Trancaram-se as portas, carregaram-se as armas, os homens sentaram-se às janelas da frente procurando alguém fora do normal que pudesse estar a aproximar-se sorrateiramente da sua rua. Mas tudo terminara ao fim da noite quando o homem entrou na esquadra da polícia para se entregar, explicando que aquilo tinha sido uma briga de taberna que fora longe de mais. Aparentemente, a vítima tinha saído do bar sem pagar uma aposta. O homem foi acusado de homicídio não premeditado e condenado a seis anos na penitenciária estadual. Os polícias da nossa cidade tinham o emprego mais aborrecido do mundo, mas, ainda assim, gostavam de se passear com ar empertigado ou sentar-se nos cafés a falar dos "crimes a sério", como se tivessem resolvido o caso do bebê dos Lindbergh.
Mas a casa de Jamie ficava a caminho da minha e não podia recusar sem magoá-la. Não era que gostasse dela ou isso, não me interpretem mal, mas quando somos obrigados a passar algumas horas por dia com alguém, tendo de continuar a fazê-lo durante pelo menos mais uma semana, não queremos fazer nada que possa tornar o dia seguinte difícil para qualquer um de nós.
A peça ia ser representada na sexta-feira e no sábado seguintes, e muita gente andava já a falar no assunto. Miss Garber tinha ficado tão bem impressionada com Jamie e comigo que dizia a todos que aquele ia ser o melhor espetáculo que a escola alguma vez apresentara. Descobrimos que ela também tinha um verdadeiro talento para a publicidade. Havia uma estação de rádio na cidade, e eles entrevistaram-na, não uma, mas duas vezes. - Vai ser maravilhoso - declarou - uma autêntica maravilha. - Também tinha telefonado para o jornal local e eles, especialmente devido à relação Jamie-Hegbert, concordaram em escrever um artigo sobre a peça, embora toda a gente na cidade já soubesse da sua realização. Mas Miss Garber era implacável e, naquele mesmo dia, dissera-nos que a Playhouse ia arranjar mais cadeiras para acomodar a enorme multidão que se esperava. A turma fez várias exclamações de espanto e aprovação, como se fosse uma coisa de grande importância, e acho que para alguns até era. Não nos podemos esquecer que tínhamos pessoas como o Eddie na turma. Ele devia pensar que aquela seria talvez a única vez na sua vida em que alguém iria mostrar algum interesse por ele. A triste verdade era que, provavelmente, ele tinha razão.
Poder-se-ia pensar que eu também estaria a ficar entusiasmado com tudo aquilo, mas, na verdade, não estava. Os meus amigos continuavam a troçar de mim na escola, e não tinha uma tarde livre há muito tempo. A única coisa que me fazia continuar era o fato de estar a fazer o que era "correto". Sei que não é muito, mas, sinceramente, era tudo o que tinha. De vez em quando, até me sentia um pouco satisfeito com aquilo também, embora jamais o admitisse perante alguém. Podia quase imaginar os anjos no Céu, reunidos a olhar melancolicamente para mim das alturas, com pequenas lágrimas enchendo-lhes os cantos dos olhos, dizendo como eu era maravilhoso por todos os sacrifícios que estava a fazer.
Assim estava eu a acompanhá-la até casa naquela primeira noite, a pensar nessas coisas, quando Jamie me fez uma pergunta.
- É verdade que tu e os teus amigos às vezes vão para o cemitério à noite?
Fiquei meio surpreendido por ela mostrar sequer algum interesse por aquilo. Embora não fosse propriamente um segredo, não parecia de todo ser o gênero de coisa por que ela se interessasse.
- Sim - disse, encolhendo os ombros. - às vezes.
- O que é que fazem lá, além de comer amendoins?
Suponho que sabia isso também.
- Sei lá - respondi. - Conversamos... Dizemos piadas. É apenas um sítio onde gostamos de ir.
- Alguma vez tiveste medo?
- Não - respondi. - Porquê? Terias medo?
- Não sei - disse ela. - Talvez.
- Porquê?
- Porque teria medo de fazer alguma coisa de errado.
- Não fazemos nada de mal lá. Quer dizer, não derrubamos as lápides ou deixamos lá o nosso lixo - expliquei. Não lhe queria contar as nossas conversas sobre Henry Preston porque sabia que isso não era coisa que Jamie pudesse gostar de ouvir. Na semana anterior, Eric tinha pensado em voz alta sobre quanto tempo um tipo como aquele podia estar deitado na cama e... bem... vocês sabem.
- Nunca se sentam só a escutar os sons? - perguntou. - Como os grilos a cantar ou o sussurrar das folhas quando o vento sopra? Ou, simplesmente, deitarem-se de costas e olhar para as estrelas?
Embora fosse uma adolescente, e já o era há alguns anos, Jamie não entendia absolutamente nada de adolescentes, e tentar compreender rapazes adolescentes para ela era como tentar decifrar a teoria da relatividade.
- Não propriamente - respondi.
Acenou ligeiramente com a cabeça.
- Acho que era isso que faria se estivesse lá, se alguma vez fosse, quero dizer. Olharia apenas em volta para ver bem o lugar, ou sentava-me em silêncio e escutava, simplesmente.
Toda aquela conversa me parecia estranha, mas não o revelei, e caminhamos em silêncio durante algum tempo. E uma vez que ela quis saber um pouco sobre mim, senti-me meio obrigado a perguntar alguma coisa sobre ela. Quer dizer, ela não mencionara os desígnios de Deus nem nada disso, por isso era o mínimo que eu podia fazer.
- Então, o que é que tu fazes? - perguntei. - Quer dizer, além de trabalhar com os órfãos, ou ajudar os animaizinhos, ou ler a Bíblia? - Parecia ridículo, até para mim, admito, mas era isso o que ela fazia.
Sorriu para mim. Penso que ficou surpreendida com a minha pergunta, e até mais surpreendida com o meu interesse por ela.
- Faço muitas coisas. Estudo, faço companhia ao meu pai. De vez em quando, jogamos ao gim rummy. Coisas dessas gênero.
- Nunca sais com amigos para te divertires?
- Não. - Percebi pela maneira como respondeu que, mesmo para ela, era evidente que ninguém a queria por perto.
- Aposto que estás entusiasmada com a perspectiva de ir para a universidade para o ano - disse, mudando de assunto.
Demorou um pouco a responder.
- Acho que já não vou - disse, prosaicamente. A sua resposta apanhou-me desprevenido. Jamie tinha algumas das notas mais altas do nosso ano e, dependendo de como corresse o último semestre, podia até acabar por fazer o discurso de despedida na cerimônia de formatura. Tínhamos uma tabela de apostas a correr sobre quantas vezes ela iria mencionar os desígnios de Deus. O meu palpite era catorze, uma vez que ela teria apenas cinco minutos para discursar.
- E Mount Sermon? Pensei que fosse para aí que planeavas ir. Ias adorar um sítio como aquele - aventei.
Olhou para mim com um tremeluzir nos olhos.
- Queres dizer que é mesmo o sítio ideal para mim, não é?
Aquelas perguntas inesperadas que ela às vezes me lançava deixavam-me completamente zonzo.
- Não quis dizer isso - emendei depressa. - Só que tinha ouvido dizer que estavas muito entusiasmada por ires para lá para o ano.
Encolheu os ombros sem me responder e, para ser franco, não sabia o que pensar do assunto. Nessa altura, tínhamos já chegado à casa dela e parado no passeio em frente. De onde estava, podia vislumbrar a sombra de Hegbert através das cortinas. A luz estava acesa, e ele encontrava-se sentado no sofá junto à janela. Tinha a cabeça inclinada, como se estivesse a ler qualquer coisa. Imaginei que fosse a Bíblia.
- Obrigada por me teres acompanhado até casa, Landon - disse ela, erguendo o olhar para mim por um instante antes de, finalmente, começar a dirigir-se para a porta.
Ao vê-la partir, não pude deixar de pensar que, de todas as vezes que tinha falado com ela, aquela fora a conversa mais esquisita que tínhamos tido. Apesar da estranheza de algumas das suas respostas, ela parecia quase normal.

Na noite seguinte, quando a acompanhava a casa, perguntou pelo meu pai.
- Está bem, suponho - respondi. - Mas nunca fica muito tempo por cá.
- Sentes falta disso? Crescer sem tê-lo por perto.
- às vezes.
- Sinto a falta da minha mãe, também - disse ela - apesar de nem sequer a ter conhecido.
Pela primeira vez, considerei que Jamie e eu podíamos ter algo em comum. Pensei nisso durante algum tempo.
- Deve ser difícil para ti - disse eu com sinceridade. - Mesmo que o meu pai seja como um estranho, pelo menos ainda anda por aí.
Olhou para mim enquanto caminhávamos, depois voltou-se de novo para a frente. Mexeu delicadamente no cabelo outra vez. Começava a reparar que ela fazia isso sempre que estava nervosa ou não sabia bem o que dizer.
- Por vezes é. Não me interpretes mal - amo o meu pai do fundo do coração - mas, às vezes, há alturas em que me pergunto como teria sido ter uma mãe. Acho que eu e ela poderíamos ter conversado sobre coisas de uma maneira que eu e o meu pai não podemos.
Imaginei que estivesse a falar de rapazes. Só mais tarde é que soube como estava errado.
- Como é que é viver com o teu pai? Ele é como quando está na igreja?
- Não. Na verdade, até tem um bom sentido de humor.
- Hegbert? - deixei escapar. Nem sequer conseguia imaginar tal coisa.
Penso que ela ficou chocada por ouvir referir-me a ele pelo primeiro nome, mas deixou passar e não respondeu ao meu comentário. Então,
continuou: - Não estejas tão surpreendido. Gostarias dele, se o conhecesses melhor.
- Duvido que alguma vez o venha a conhecer melhor.
- Nunca se sabe, Landon - disse ela, sorrindo - quais são os desígnios de Deus.
Detestava quando Jamie dizia coisas daquelas. Com ela, só se sabia que falava com Deus todos os dias e nunca se sabia o que é que o "Chefe lá em cima" lhe tinha dito. Jamie podia até ter uma entrada reservada para o céu, sendo uma pessoa tão boa.
- E como é que poderia vir a conhecê-lo melhor? - perguntei.
Não respondeu, mas sorriu para consigo, como se soubesse de algum segredo que me estava a esconder. Como disse, detestava quando ela fazia aquilo.

Na noite seguinte, falamos sobre a Bíblia com que ela andava sempre.
- Porque é que a trazes sempre contigo? - perguntei.
Eu julgava que ela andava com a Bíblia só porque era a filha do Reverendo. Não era uma suposição assim tão difícil, tendo em conta a opinião de Hegbert sobre as Escrituras. Mas a Bíblia que ela tinha era velha e a capa estava já meia esfarrapada; eu imaginava-a o tipo de pessoa que comprava um exemplar novo todos os anos só para ajudar a indústria editorial da Bíblia, ou para demonstrar a sua dedicação renovada a Deus, ou outra coisa qualquer.
Deu alguns passos antes de responder.
- Era da minha mãe - respondeu simplesmente.
-Ah... - Disse-o sentindo-me como se tivesse pisado na tartaruga de estimação de alguém, esmagando-a debaixo do meu sapato.
Olhou para mim.
- Não faz mal, Landon. Como é que podias saber?
- Desculpa ter perguntado...
- Não tens de pedir desculpa. Não fizeste mal nenhum em perguntar. - Fez uma pausa. - Ofereceram esta Bíblia aos meus pais quando se casaram, mas foi a minha mãe que a utilizou primeiro. Lia-a o tempo todo, especialmente quando estava a atravessar um período difícil na vida.
Pensei nos abortos espontâneos. Jamie continuou.
- Gostava muito de a ler à noite, antes de dormir, e tinha-a consigo no hospital quando eu nasci. Quando o meu pai soube que ela tinha morrido, pegou na Bíblia e em mim e levou-nos para fora do hospital ao mesmo tempo.
- Sinto muito - disse eu. Sempre que alguém nos conta uma coisa triste, é a única coisa que conseguimos pensar para dizer, mesmo que já o tenhamos dito antes.
- É apenas uma maneira de... de me sentir parte dela. Compreendes? - Não o disse com um ar contristado, mas mais para que eu ficasse a saber a resposta à minha pergunta. De alguma maneira, isso piorou as coisas.
Depois de me contar a sua história, pensei de novo nela a crescer com Hegbert e, na verdade, não sabia o que dizer. Enquanto ponderava a minha resposta, porém, ouvi um carro apitar atrás de nós, e tanto eu como Jamie paramos e voltámo-nos ao mesmo tempo quando o ouvimos encostar junto à berma.
Eric e Margaret estavam dentro do carro. Eric no lado do condutor, Margaret no lado mais próximo de nós.
- Ora vejam quem temos aqui - disse Eric debruçando-se sobre o volante para que eu pudesse ver-lhe a cara. Não lhe tinha dito que andava a acompanhar Jamie a casa e, segundo a maneira curiosa como a mente adolescente funciona, este novo acontecimento tornou-se mais importante do que tudo o que estava a sentir em relação à história de Jamie.
- Olá, Eric. Olá, Margaret - disse Jamie animadamente.
- A acompanhar Jamie a casa, Landon? - Podia ver o diabinho por detrás do sorriso de Eric.
- Olá, Eric - disse, desejando que ele nunca me tivesse visto.
- Está uma linda noite para se passear, não está? - perguntou Eric. Acho que por Margaret estar entre ele e Jamie Eric se sentia um pouco mais atrevido do que habitualmente na presença desta. E, de modo nenhum, ia deixar escapar aquela oportunidade para me picar.
Jamie olhou em volta e sorriu.
- Sim, está.
Eric olhou em volta também, com uma expressão melancólica nos olhos, depois respirou fundo. Percebi logo que estava a fingir.
- Caramba, está-se mesmo bem aqui. - Suspirou e olhou para nós, encolhendo os ombros. - Oferecia-vos uma boleia, mas não seria tão agradável como passear sob as estrelas, e não queria que vocês perdessem isso. - Disse isto como se estivesse a fazer-nos um favor.
- ó, estamos quase em minha casa, de qualquer maneira- disse Jamie. - Ia oferecer a Landon um copo de sidra. Não querem ir lá ter? Temos bastante.
Um copo de sidra? Em casa dela? Não tinha falado disso...
Enfiei as mãos nos bolsos, perguntando-me se aquilo podia ainda piorar.
- Ah, não... não é preciso. íamos a caminho do Cecil's Diner.
- Em noite de semana? - perguntou ela ingenuamente.
- Oh, não vamos ficar até muito tarde - prometeu Eric - mas, se calhar, é melhor irmos andando. Divirtam-se os dois.
- Obrigado por terem parado - disse Jamie, acenando.
Eric pôs o carro de novo em andamento, mas devagar. Jamie pensou, provavelmente, que ele era um condutor cuidadoso. Na verdade, não era, embora fosse bom a esquivar-se de problemas quando chocava contra alguma coisa. Lembro-me de uma vez em que ele disse à mãe que uma vaca tinha saltado à frente do carro e que era por isso que a grelha e o guarda-lamas estavam danificados. - Aconteceu tão depressa, mãe, a vaca apareceu do nada. Surgiu de repente à minha frente, e não pude travar a tempo. Bem, toda a gente sabe que as vacas não surgem de repente de lado algum, mas a mãe acreditou nele. Na verdade, ela também havia sido chefe de claque na escola.
Depois de terem desaparecido de vista, Jamie voltou-se para mim.
- Tens amigos simpáticos, Landon.
- Com certeza que tenho. - Recordo-me da maneira cuidadosa como expressei a minha resposta.
Depois de deixar Jamie - não, não fiquei para tomar sidra - dirigi-me rapidamente para casa, resmungando o tempo todo. Agora a história de Jamie já tinha desaparecido da minha mente e quase podia ouvir os meus amigos no Cecil's Diner a rirem-se de mim.
Vêem o que acontece quando se é bom rapaz?

Na manhã seguinte, já toda gente sabia que eu acompanhava Jamie a casa, e isso deu origem a outra onda de especulação sobre nós os dois. Dessa vez, foi ainda pior do que da primeira. Foi tão mau que tive de passar o intervalo do almoço na biblioteca só para fugir daquilo tudo.
Nessa noite, o ensaio teve lugar na Playhouse. Era o último antes de o espetáculo estrear e tínhamos muito que fazer. Logo depois da escola, os rapazes da aula de teatro tinham de carregar todos os adereços da sala de aulas para a camioneta alugada a fim de os transportar para a Playhouse. O único problema era que Eddie e eu éramos os dois únicos rapazes, e ele não é propriamente o indivíduo mais coordenado deste mundo. Ao passarmos por uma porta, carregando uma das coisas mais pesadas, o seu corpo à Hooville atrapalhava-o. Em todos os momentos críticos em que realmente eu precisava da sua ajuda para equilibrar a carga, ele tropeçava num bocado de pó ou num inseto no chão, e o peso do adereço caia-me nas mãos, entalando-as contra o umbral da porta da maneira mais dolorosa possível.
- D-d-desculpa - dizia ele. - M-m-magoaste-te?
Abafava os palavrões que me subiam à garganta e dizia irritado:
- Não, mas não faças isso outra vez.
Mas ele não conseguia evitar andar aos tropeções, tal como não conseguiria evitar que chovesse. Quando acabamos de carregar e descarregar tudo, os meus dedos pareciam os de Toby, o biscateiro errante. O pior de tudo foi que nem sequer tive hipóteses de comer antes de o ensaio começar. O transporte dos adereços demorou três horas, e só os acabamos de montar alguns minutos antes de os outros chegarem para o inicio do ensaio. Com tudo o resto que tinha acontecido naquele dia, escusado será dizer que eu estava mesmo de muito mau humor.
Debitei o meu texto sem sequer pensar nele e Miss Garber não pronunciou a palavra maravilhoso durante toda a noite. No final, tinha uma expressão inquieta nos olhos, mas Jamie sorria apenas e dizia-lhe que não se preocupasse, que tudo iria correr bem. Sabia que Jamie estava a tentar ajudar-me, mas quando me pediu que a acompanhasse a casa, eu disse-lhe que não. A Playhouse ficava no centro da cidade e para a acompanhar teria de me desviar um bom bocado do meu caminho. Além disso, não queria que me vissem nenhuma vez a acompanhá-la. Mas Miss Garber ouviu o pedido de Jienie e adiantou, muito firmemente, que eu teria muito prazer em fazê-lo.
- Podem falar sobre a peça - sugeriu. - Talvez pudessem trabalhar os pontos fracos. - Por pontos fracos, claro, referia-se especificamente a mim.
Então, mais uma vez, acabei por acompanhar Jamie a casa, mas ela percebeu que eu não estava realmente com disposição para conversar, porque caminhava uns passos à sua frente, as mãos nos bolsos, sem sequer me voltar para ver se ela vinha atrás de mim. Procedi assim durante os primeiros minutos, sem dizer uma palavra.
- Não estás lá muito bem disposto hoje, pois não? - disse ela finalmente. - Esta noite nem sequer tentaste.
- Não deixas escapar nada, pois não? - resmunguei sarcasticamente sem olhar para ela.
- Talvez possa ajudar - ofereceu-se. Disse-o num tom animado, o que me irritou ainda mais.
- Duvido - retorqui asperamente.
- Talvez, se me dissesses o que se passa.
Não a deixei terminar.
- Olha - disse eu, parando, virando-me para encará-la. - Passei o dia inteiro a carregar a porcaria dos adereços, não como desde o almoço e agora tenho de me desviar quase dois quilômetros do meu caminho para te levar a casa, quando ambos sabemos que nem sequer precisas que eu o faça.
Foi a primeira vez que lhe levantei a voz. Para dizer a verdade, senti-me bem. Há muito tempo que aquilo se andava a acumular. Jimie ficou demasiado surpreendida para reagir, e eu prossegui.
- E a única razão por que estou a fazer isto é por causa do teu pai, que nem sequer gosta de mim. Tudo isto é uma estupidez, e desejava que nunca tivesse aceite fazê-lo.
- Estás a dizer isso só porque estás nervoso com o espetáculo.
Interrompi-a abanando a cabeça. Quando começava a desbobinar, por vezes era-me difícil parar. Só conseguia suportar o otimismo e a jovialidade dela até certo ponto, e aquele não era dia para se meterem comigo.
- Não percebes? - perguntei, exasperado. - Não estou nervoso por causa do espetáculo, simplesmente não quero estar aqui. Não te quero acompanhar a casa, não quero que os meus amigos continuem a falar de mim, e não quero passar o tempo contigo. Estás sempre a comportar-te como se fossemos amigos, mas não somos. Não somos nada. Só quero que tudo isto acabe para que possa voltar à minha vida normal.
Ela parecia magoada com a minha explosão e, para ser franco, não lhe podia levar a mal.
- Compreendo - foi tudo o que disse. Esperei que ela me fosse levantar a voz, que se defendesse, que expusesse de novo o seu caso, mas não o fez. Tudo o que fez foi olhar para o chão. Penso que parte dela queria chorar, mas não chorou, e eu, por fim, afastei-me em silêncio, deixando-a sozinha. Pouco depois, porém, ouvi-a começar também a andar. Manteve-se cerca de cinco metros atrás de mim o resto do trajeto e não tentou falar comigo outra vez até começar a subir a ladeira da sua casa. Afastava-me já ao longo do passeio quando ouvi a voz dela.
- Obrigada por me teres acompanhado a casa, Landon - gritou.
Estremeci assim que ela disse aquilo. Mesmo quando era mau para ela e dizia as piores coisas, Jamie conseguia encontrar uma razão para me agradecer. Era mesmo desse gênero de mulheres, e penso que a odiava realmente por isso.
Ou melhor, penso eu, odiava-me a mim próprio.

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