segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

CAPÍTULO 4

Nas duas semanas a seguir ao baile, a minha vida regressou praticamente à normalidade. O meu pai estava de novo em Washington D.C., o que tornava as coisas muito mais divertidas em casa, sobretudo porque podia sair novamente às escondidas pela janela e ir para o cemitério nas minhas incursões noturnas. Não sei o que nos atraía tanto ao cemitério. Talvez tivesse alguma coisa que ver com os próprios túmulos porque, no que tocava a túmulos, até eram bastante confortáveis.
Normalmente, sentávamo-nos num pequeno lote onde a família Preston tinha sido enterrada havia cerca de cem anos. Havia oito pedras tumulares naquele sítio, todas dispostas em círculo, o que tornava fácil passar os amendoins entre nós. Uma vez, eu e os meus amigos decidimos investigar aquilo que fosse possível sobre os Preston e fomos à biblioteca ver se havia alguma coisa escrita a respeito desta família. Quer dizer, se nos vamos sentar no túmulo de alguém, já agora por que não saber alguma coisa sobre essa pessoa, certo!?
Não havia muita coisa sobre a família nos registros históricos, mas encontramos uma informação interessante. Henry Preston, o pai, tinha sido lenhador, maneta, acreditem ou não. Parece que era capaz de derrubar uma árvore tão depressa como qualquer outro com ambos os braços. Ora bem, a visão de um lenhador maneta é bastante forte, por isso falávamos muito sobre ele. Costumávamos imaginar que mais poderia ele fazer com apenas um braço e passávamos horas a discutir a que velocidade conseguiria lançar uma
bola de basebol ou se seria capaz ou não de atravessar a nado a Intracoastal Waterway. As nossas conversas não eram propriamente eruditas, admito, mas, de qualquer maneira, eu gostava delas.
Bem, Eric e eu estávamos no cemitério numa noite de domingo com dois outros amigos, a comer amendoins e a falar de Henry Preston, quando o Eric me perguntou como tinha corrido a minha "saída" com a Jamie Sullivan. Desde o baile que não tínhamos estado muito tempo juntos, porque a época de futebol já entrara na fase das finais e Eric ausentara-se durante os últimos fins-de-semana com a equipa.
- Correu bem - respondi, encolhendo os ombros, esforçando-me o melhor que podia por parecer desinteressado.
Eric bateu-me amigavelmente com os cotovelos nas costelas, e eu gritei. Ele era, pelo menos, dez quilos mais pesado que eu.
- Deste-lhe um beijo de despedida?
-Não.
Bebeu um longo trago da sua lata de Budweiser enquanto eu respondia. Não sei como é que ele conseguia, mas Eric nunca tinha problemas em comprar cerveja, o que era estranho, uma vez que toda a gente na cidade sabia a idade dele.
Limpou os lábios com as costas da mão, lançando-me um olhar de soslaio.
- Pensava que depois de ela te ter ajudado a limpar a casa de banho lhe tivesses dado, pelo menos, um beijo de despedida.
- Pois, mas não dei.
- Tentaste ao menos?
-Não.
- Porquê?
- Ela não é desse tipo de garotas - retorqui e, apesar de todos sabermos que isso era verdade, ainda assim parecia que estava a defendê-la.
Eric agarrou-se a isso como uma sanguessuga.
- Acho que gostas dela - insistiu.
- Só dizes disparates - disse eu, e ele deu-me uma palmada nas costas com impacte suficiente para forçar a saída do ar dentro de mim. Andar com Eric implicava, normalmente, ficar com algumas nódoas negras no dia seguinte.
- Está bem, posso só dizer disparates - disse ele, piscando-me o olho - mas és tu que estás caidinho pela Jamie Sullivan.
Sabia que estávamos a trilhar terreno perigoso.
- Usei-a para impressionar a Margaret - disse eu. - E pelos bilhetes de amor que ela me tem enviado ultimamente, suponho que deve ter resultado.
Eric riu-se alto, dando-me de novo uma palmada nas costas.
- Tu e Margaret, ora aí está uma coisa engraçada...
Sabia que tinha acabado de me esquivar de boa e suspirei de alívio quando a conversa mudou de rumo. Participava de vez em quando, mas não estava realmente atento ao que eles diziam. Em vez disso, continuava a ouvir uma pequena voz dentro de mim que me fazia pensar no que Eric havia dito.
A verdade era que Jamie fora, provavelmente, o melhor par que eu poderia ter tido naquela noite, sobretudo tendo em conta como correu a noite. Pouquíssimas parceiras - raios, pouquíssima gente, ponto final - teria feito o que ela fez. Ao mesmo tempo, o fato de Jamie ter sido um bom par não queria dizer que eu gostasse dela. Não voltei a falar-lhe desde o baile, tirando as vezes que a vi na aula de teatro e, mesmo então, eram só algumas palavras de vez em quando. Se realmente gostasse dela, disse para comigo, teria sentido vontade de conversar com ela. Se gostasse dela, ter-me-ia oferecido para a acompanhar a casa. Se gostasse dela, teria querido levá-la ao Cecil's Diner para uma dose de hushpuppies e uma Cola. Mas não queria fazer nenhuma dessas coisas. Não queria mesmo. Quanto a mim, já tinha cumprido a minha penitência.





No dia seguinte, domingo, fiquei no meu quarto, a preencher o formulário de candidatura à UNC. Para além das cópias dos documentos da minha escola e de outras informações pessoais, eles pediam cinco composições do tipo normal. Se pudesses conhecer uma figura da história, quem seria essa figura e porquê? Qual a influência mais importante na tua vida e porquê? O que é que se procura num herói e porquê? Os temas das composições eram bastante previsíveis - o nosso professor de Inglês tinha-nos informado sobre o que esperar e eu já preparara duas ou três versões na aula como trabalho de casa.
O Inglês era, provavelmente, a minha melhor disciplina. Nunca tinha tido menos de dezesseis valores desde que comecei a escola, e fiquei contente por darem importância à escrita na candidatura. Se tivesse sido a Matemática, podia ter tido problemas, sobretudo se incluísse aqueles problemas de álgebra que falavam dos dois comboios que partiam com uma hora de diferença um do outro, viajavam em direções opostas a sessenta e cinco quilômetros por hora, etc. Não que fosse mau a Matemática - costumava ter pelo menos um doze - mas não era muito vocacionado para essa disciplina.
Pois bem, estava a escrever uma das minhas composições quando tocou o telefone. O único telefone que tínhamos encontrava-se na cozinha e tive de correr ao andar de baixo para atender. Respirava tão ruidosamente que não consegui distinguir bem a voz, embora se parecesse com a da Angela. Sorri logo para mim mesmo. Apesar de ter vomitado pela casa-de-banho toda, e de eu ter tido de a limpar, na verdade, ela era bastante divertida a maior parte do tempo. O seu vestido tinha sido mesmo um sucesso, pelo menos durante a primeira hora. Calculei que estivesse a telefonar para me agradecer, ou até para irmos juntos comer uma sandes de carne grelhada e hushpuppies ou outra coisa do gênero.
- Landon?
- Oh, olá - disse eu, fingindo indiferença - tudo bem?
Seguiu-se uma curta pausa do outro lado.
- Como estás?
Foi então que percebi que não estava a falar com Angela, mas sim com Jamie, e quase deixei o telefone cair. Não posso dizer que fiquei contente por ser ela. Por um instante, perguntei-me quem lhe teria dado o meu número de telefone, até que me lembrei que provavelmente estava nos registros da igreja.
- Landon?
- Estou bem - balbuciei por fim, ainda em estado de choque.
- Estás ocupado?
- Mais ou menos.
-Ah... Está bem... - disse ela, a sua voz sumindo-se. Fez outra pausa.
- Por que me estás a telefonar? - perguntei.
Levou alguns segundos para pôr as palavras cá fora.
-Bem... queria só saber se não te importavas de vir até aqui um pouco, lá mais para o fim da tarde.
- Ir até aí?
- Sim. A minha casa.
- A tua casa? - Nem sequer tentei disfarçar a crescente surpresa na minha voz. Jamie ignorou-a e continuou.
- Tenho de falar contigo sobre um assunto. Não te pediria se não fosse importante.
- Não podes dizer-me pelo telefone?
- Preferia não o fazer.
- Bem, estava a planear escrever as composições para a candidatura à universidade esta tarde - disse, tentando esquivar-me.
- pronto... como disse, é importante, mas suponho que pode ficar para falar contigo na escola, na segunda-feira
Com isso percebi, de repente, que ela não me iria largar e que acabaríamos por falar de uma maneira ou de outra. Estudei rapidamente todos os cenários possíveis, tentando imaginar qual deles deveria escolher - falar com ela onde os meus amigos nos vissem ou falar em casa dela. Apesar de nenhuma das opções ser particularmente agradável, qualquer coisa no fundo da minha mente fazia-me lembrar que ela me havia ajudado quando fora mesmo preciso, e que o mínimo que podia fazer era ouvir o que ela tinha para dizer. Posso ser irresponsável, mas sou um irresponsável simpático, mesmo que seja eu a dizê-lo.
Claro que isso não significava que todo o mundo tivesse de ficar a saber.
- Não - disse eu - pode ser hoje
Combinamos encontrar-nos às cinco horas, e o resto da tarde passou devagar, lento como a tortura chinesa das gotas. Saí de casa vinte minutos antes das cinco para ter tempo suficiente para lá chegar. A minha casa ficava perto da praia, virada para a Intracoastal Waterway, na parte histórica da cidade, apenas a duas casas de distância do local onde o Blackbeard viveu. Jamie morava no outro lado da cidade, para lá da linha do comboio, por isso eu iria levar aquele tempo a chegar lá.
Estávamos em Novembro, e o ar começava a ficar mais fresco. Uma das coisas de que realmente gostava em Beaufort era o fato de as primaveras e os outonos durarem praticamente o ano todo. Podia fazer calor no Verão ou nevar de seis em seis anos, e podia haver um período de tempo muito frio que durava à volta de uma semana no mês de Janeiro, mas durante a maior parte do tempo precisávamos apenas de um casaco leve para suportar o Inverno. Aquele era um desses dias perfeitos - vinte e pouco graus, sem uma nuvem no céu.
Cheguei a casa de Jamie mesmo à hora e bati à porta. Ela veio abri-la, e uma espreitadela rápida revelou-me que Hegbert não se encontrava em casa. O tempo não estava suficientemente quente para um chá doce ou limonada, mas sentámo-nos de novo nas cadeiras da varanda, sem beber nada. O Sol começava a descer no céu, e não havia ninguém na rua. Desta vez não tive de mudar a posição da cadeira. Não tinham mexido nela desde a última vez que eu ali estivera.
- Obrigada por teres vindo, Landon - disse ela. - Sei que estás muito ocupado, mas agradeço teres tirado algum tempo para vir cá.
- Então, o que há de tão importante? - perguntei, querendo despachar-me daquilo o mais depressa possível.
Jamie, pela primeira vez desde que a conhecera, parecia na verdade nervosa sentada ali ao meu lado. Juntava e afastava as mãos continuamente.
- Quero pedir-te um favor - disse ela com um ar sério.
- Um favor?
Acenou com a cabeça.
Primeiro, pensei que me fosse pedir para ajudá-la a decorar a igreja, tal como mencionara no baile, depois pensei que talvez precisasse que eu usasse o carro da minha mãe para levar algumas coisas para os órfãos. Jamie não tinha carta de condução e, de qualquer maneira, Hegbert precisava constantemente do carro, uma vez que havia sempre um funeral ou outra coisa qualquer a que ele tinha de ir. Mas foram precisos ainda alguns segundos para que ela começasse a falar.
Suspirou, juntando de novo as mãos.
- Queria perguntar-te se não te importarias de fazer de Tom Thornton na peça da escola.
Tom Thornton, como disse antes, era o homem que ia à procura de uma caixinha de música para a filha, aquele que se encontra com o anjo. Tirando o anjo, era de longe o papel mais importante.
-Bem... não sei - hesitei, confuso. - Pensei que Eddie Jones fosse fazer de Tom. Foi o que Miss Garber nos disse.
Eddie Jones era muito parecido com Carey Dennison. Era muito magro, com a cara cheia de borbulhas e, normalmente, falava às pessoas olhando-as de esguelha. Tinha um tique que o levava a semicerrar os olhos sempre que ficava nervoso, o que acontecia quase sempre. Provavelmente, acabaria a declamar o seu texto como um cego psicótico diante de uma multidão. Como se não bastasse, também gaguejava, demorando bastante tempo a dizer fosse o que fosse. Miss Garber dera-lhe o papel por ele ter sido o único a oferecer-se para representá-lo, mas, mesmo assim, era evidente que ela também não queria que fosse ele o intérprete. Os professores também eram humanos, mas ela não tinha alternativa, uma vez que ninguém mais se tinha oferecido.
- Miss Garber não disse isso exatamente. O que disse foi que Eddie poderia ficar com o papel se mais ninguém o quisesse tentar fazer.
- E não há outra pessoa para o fazer?
Mas, na verdade, não havia mais ninguém, e eu sabia disso. Por causa da exigência de Hegbert de que apenas os alunos do último ano podiam participar, a representação da peça estava comprometida naquele ano. No último ano do curso, havia cerca de cinqüenta rapazes, vinte e dois dos quais pertenciam à equipa de futebol e, com a equipa ainda em competição para o título estadual, nenhum deles iria ter tempo para ir aos ensaios. Dos cerca dos restantes trinta, mais de metade participava na banda e também tinham ensaios depois das aulas. Um cálculo rápido revelava que havia uma dezena de rapazes que poderiam candidatar-se ao papel na peça.
Ora bem, eu não queria mesmo participar na peça, e não apenas por ter acabado de descobrir que o teatro era a disciplina mais chata que alguma vez tinham inventado. O problema era que já levara Jamie ao baile e, com ela a fazer de anjo, não conseguia suportar a idéia de ter de passar as tardes com ela durante todo o mês. Ter sido visto com Jamie uma vez já me comprometia... Mas ser visto com ela todos os dias!. Que diriam os meus amigos?
Pude, no entanto, perceber que aquilo era realmente importante para ela. O simples fato de me ter feito o pedido tornava isso claro. Jamie nunca pedia um favor a ninguém. Penso que, lá no fundo, desconfiava que jamais alguém lhe faria um favor, por causa de quem ela era. A simples percepção desse fato fez-me sentir triste.
- E o Jeff Bangert? Ele talvez possa - sugeri.
Jamie abanou a cabeça. - Não pode. O pai dele está doente, e tem de trabalhar na loja depois das aulas até ele melhorar.
- E Darren Woods?
- Partiu o braço a semana passada quando escorregou no barco. Tem o braço engessado.
- A sério? Não sabia disso - retorqui, ganhando tempo, mas Jamie sabia o que eu estava a fazer.
- Tenho rezado muito por isto, Landon - disse ela simplesmente, e suspirou uma vez mais. - Gostava mesmo que esta peça fosse especial este ano, não por mim, mas pelo meu pai. Quero que seja a melhor encenação de sempre. Eu sei o que significará para ele ver-me no papel de anjo, porque esta peça faz-lhe recordar-se da minha mãe ... - Fez uma pausa, organizando os pensamentos. - Seria horrível se fosse um fracasso este ano, especialmente porque eu estou envolvida.
Deteve-se de novo antes de continuar. A sua voz tornava-se mais emocionada à medida que prosseguia.
- Sei que Eddie daria o seu melhor, sei isso muito bem. E não tenho quaisquer problemas em fazer a peça com ele, não tenho mesmo. Na verdade, ele é muito boa pessoa, mas disse-me que já não tinha a certeza de querer fazê-la. às vezes, as pessoas na escola podem ser tão... tão... cruéis, e não quero que magoem o Eddie. Mas... - respirou fundo - mas a verdadeira razão por que te estou a pedir é o meu pai. É um homem tão bom, Landon. Se as pessoas fizerem troça das recordações que ele tem da minha mãe enquanto eu estiver a representar o papel... Bem, isso iria entristecer-me muito. E com Eddie e eu... Sabes o que iriam dizer.
Concordei com a cabeça, franzindo os lábios, sabendo que eu teria sido uma dessas pessoas de quem ela estava a falar. Na verdade, já era uma delas. Jamie e Eddie, o duo dinâmico, como lhe chamávamos, depois de Miss Garber ter anunciado que seriam eles a interpretar aqueles papéis. O simples fato de ter sido eu a começar essa brincadeira fez-me sentir pessimamente, quase até à náusea.
Ela endireitou-se na cadeira e olhou para mim com um ar triste, como se já soubesse que eu ia dizer que não. Suponho que não sabia como eu me estava a sentir. Continuou.
- Sei que os desafios são sempre parte dos desígnios de Deus, mas não quero crer que Deus seja cruel, especialmente para alguém como o meu pai. Ele dedica a sua vida a Deus, entrega-se à comunidade. E já perdeu a mulher e teve de me criar sozinho. E amo-o muito por isso
Jamie virou a cabeça, mas pude ver lágrimas nos seus olhos. Era a primeira vez que a via chorar. Penso que parte de mim queria chorar também.
- Não estou a pedir que o faças por mim - disse baixinho - A sério que não e, se recusares, continuarei a rezar por ti. Prometo. Mas se quiseres fazer algo de simpático por um homem maravilhoso que é tão importante para mim... Podes só pensar no assunto?
Os olhos dela pareciam os de um cocker spaniel que tinha acabado de fazer porcaria no tapete. Olhei para os pés.
- Não preciso pensar no assunto - disse, por fim. - Aceito. Realmente não tinha escolha, pois não?

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