segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

CAPÍTULO 5


No dia seguinte, falei com Miss Garber, prestei provas e fiquei com o papel. Eddie não ficou nada aborrecido. Na verdade, percebi que tinha ficado verdadeiramente aliviado com tudo aquilo. Quando Miss Garber lhe perguntou se estaria disposto a deixar-me interpretar o papel de Tom Thornton, o seu rosto descontraiu-se de imediato e um dos seus olhos voltou a abrir-se. - S-s-sim, c-c-com c-c-certeza - disse gaguejando. - E-e-eu com-com-compreendo. - Levou quase dez segundos para conseguir dizer aquilo.
Pela sua generosidade, porém, Miss Garber deu-lhe o papel do vagabundo e todos sabíamos que ele iria sair-se bastante bem nesse papel. O vagabundo, estão a ver, era completamente mudo, mas o anjo sabia sempre o que ele estava a pensar. A certa altura da peça, o anjo tem de dizer ao vagabundo mudo que Deus olhará sempre por ele, porque Deus se preocupa especialmente com os pobres e os oprimidos. Esse era um dos sinais para a assistência de que o anjo tinha sido enviado por Deus. Como disse antes, Hegbert queria que ficasse bem claro quem concedia a redenção e a salvação, e por certo, não iriam ser uns quantos fantasmas raquíticos que surgiam subitamente do nada.
Os ensaios começaram na semana seguinte. Ensaiávamos na sala de aulas, porque a Playhouse não nos abria as portas até termos superado todos as "pequenas falhas" na nossa representação. Por pequenas falhas, quero referir-me à nossa tendência para derrubar acidentalmente os adereços. Estes tinham sido feitos por Toby Bush, cerca de quinze anos antes, quando a peça foi encenada pela primeira vez. Toby Bush era uma espécie de biscateiro errante que tinha realizado alguns projetos para a Playhouse no passado. Era um biscateiro errante porque bebia cerveja o dia inteiro enquanto trabalhava, e por volta das duas horas, mais ou menos, já estava nas nuvens. Suponho que não via bem, porque magoava os dedos com o martelo pelo menos uma vez por dia. Sempre que isso acontecia, atirava o martelo para o chão e desatava aos pulos, segurando os dedos e amaldiçoando toda a gente desde a mãe até ao Diabo. Quando, por fim, se acalmava, bebia outra cerveja para aliviar as dores antes de regressar ao trabalho. Tinha os nós dos dedos do tamanho de amêndoas, permanentemente inchados devido a anos e anos de marteladas, e ninguém estava disposto a contratá-lo a tempo inteiro. A única razão por que Hegbert o havia contratado foi por ele cobrar os preços mais baixos da cidade
Mas Hegbert não permitia a bebida ou palavrões e Toby, realmente, não sabia como trabalhar num ambiente tão severo. Como resultado, o trabalho ficou meio desengonçado, embora não fosse, na verdade, assim tão mau. Alguns anos depois, os adereços começaram a desconjuntar-se e Hegbert assumiu a tarefa de manter as coisas juntas. Mas embora Hegbert fosse bom a pregar a Bíblia, não o era a pregar pregos, e os adereços tinham pregos torcidos e ferrugentos espetados por todo o lado, de tal modo que tínhamos de ter o cuidado de andar exatamente pelo sítio certo. Se fossemos de encontro a eles seguindo um trajeto errado, ou se nos magoássemos e os adereços tombassem, os pregos faziam pequenos buracos no chão do palco. Alguns anos mais tarde, o palco da Playhouse teve de levar um novo revestimento e, embora não pudessem fechar as suas portas a Hegbert, fizeram um acordo com ele para que tivesse mais cuidado no futuro. Isso queria dizer que devíamos ensaiar na sala de aula até superarmos as "pequenas falhas".
Felizmente, Hegbert não se envolvia na produção da peça, devido a todos os seus deveres de pastor. A tarefa cabia a Miss Garber, e a primeira coisa que ela nos disse foi para memorizarmos os nossos textos o mais depressa possível. Não tínhamos tanto tempo quanto o que normalmente era concedido para os ensaios, porque o Dia de Ação de Graças calhava no último dia de Novembro, e Hegbert não queria que a peça fosse representada muito próximo do Natal, de modo a não interferir com "o seu verdadeiro significado". Isso deixava-nos apenas três semanas para a conseguirmos montar, uma semana menos do que era habitual.
Os ensaios começavam às três, e Jamie sabia todo o seu texto de cor logo no primeiro dia, o que não era realmente surpreendente. O surpreendente era que ela sabia todo o meu texto também, assim como o texto de todos os outros. Quando estávamos a ensaiar uma cena, ela fazia-o sem o guião, e eu tinha de olhar para uma pilha de folhas, tentando descobrir qual seria a minha próxima deixa. Sempre que olhava para Jamie ela parecia verdadeiramente radiante, como se o brilho de uma chama a iluminasse. As únicas deixas que eu sabia naquele primeiro dia eram as do vagabundo mudo e, de repente, fiquei mesmo com inveja do Eddie, pelo menos nesse aspecto. Aquilo ia dar muito trabalho, não era bem o que tinha esperado quando me inscrevera na disciplina de teatro.
Os sentimentos nobres que nutria pela minha participação na peça haviam-se desvanecido logo no segundo dia de ensaios. Embora soubesse que estava a fazer a "coisa certa", os meus amigos não compreendiam nada daquilo, e andavam a chatear-me desde que descobriram que eu ia entrar.
- Vais fazer o quê? - perguntou Eric quando soube. - Vais entrar na peça com a Jamie Sullivan? Estás doido ou és simplesmente estúpido? - Resmunguei que tinha uma boa razão, mas ele não largava o assunto e disse a todos do nosso grupo que eu tinha um fraquinho por ela. Neguei-o, claro, o que só fez com que ficassem a pensar que era verdade; riam-se ainda mais alto e contavam à pessoa que encontrassem a seguir. As histórias começavam a tornar-se mais disparatadas também - à hora do almoço já tinha ouvido a Sally dizer que eu estava a pensar em ficar noivo. Com efeito, penso que Sally ficou com ciúmes. Ela tivera um fraquinho por mim durante anos, e o sentimento poderia ter sido recíproco se não fosse o fato de ela ter um olho de vidro, e isso era coisa que eu simplesmente não conseguia ignorar. O olho de vidro lembrava-me algo que podíamos ver enfiado na cabeça de um mocho embalsamado numa loja de antiguidades pirosa e, para ser franco, isso causava-me arrepios.
Suponho que foi então que comecei de novo a sentir rancor por Jamie. Sei que a culpa não era dela, mas era eu quem estava a sacrificar-me por Hegbert, que na noite do baile não se esforçara para que eu me sentisse bem-vindo. Comecei a encalhar nas deixas durante os ensaios dos dias seguintes, na verdade nem sequer tentando decorá-las, e, de vez em quando, saía-me com uma piada ou duas, de que todos se riam menos Jamie e Miss Garber. Depois de terminados os ensaios, ia para casa esquecer a peça, e nem me dava ao trabalho de pegar no texto. Em vez disso, gozava com os meus amigos sobre as coisas esquisitas que Jamie fazia e contava mentiras sobre como tinha sido Miss Garber a forçar-me a entrar na peça.
A Jamie, porém, não me ia largar tão facilmente. Não, atingiu-me mesmo onde dói, mesmo em cheio no meu ego.
Cerca de uma semana após o início dos ensaios, eu saí com Eric um sábado à noite para assistir a um jogo do campeonato estadual de futebol de Beaufort. Após o jogo, encontrávamo-nos à beira do mar junto ao Ceci'ls Diner a comer hushpuppies e a ver as pessoas a passearem de carro de um lado para o outro, quando vi Jamie a descer a rua. Vinha ainda a uns cem metros de distância, voltando a cabeça de um lado para o outro, vestindo aquela velha camisola castanha de novo e com a Bíblia na mão. Deviam ser mais ou menos nove horas, o que era tarde para ela andar na rua e, mais estranho ainda, era vê-la naquela zona da cidade. Voltei-lhe as costas e puxei a gola do casaco para cima, mas até a Margaret - que tinha pudim de banana no lugar do cérebro - era suficientemente esperta para perceber de quem é que ela andava à procura.
- Landon, vem ali a tua namorada.
- Ela não é a minha namorada - resmunguei. - Não tenho namorada.
- A tua noiva, então.
Imagino que também tivesse falado com a Sally.
- Não estou noivo - disse. - Parem já com isso.
Olhei por cima do ombro para ver se ela já me tinha visto, e imagino que sim. Caminhava na nossa direção. Fingi não reparar.
- Aí vem ela - disse Margaret, soltando umas risadinhas.
- Eu sei - disse eu.
Vinte segundos depois, repetiu o aviso.
- Continua a vir. - Já vos tinha dito que ela era inteligente.
- Eu sei - resmunguei entre dentes. Se não fossem as pernas dela, podia quase irritar-nos tanto como a Jamie.
Olhei de novo em volta e, desta vez, Jamie sabia que eu a tinha visto. Sorriu e acenou para mim. Voltei-me para o lado, e um momento depois ela estava ali mesmo à minha frente.
- Olá, Landon - disse, sem reparar no meu desdém. - Olá, Eric, Margaret... - Cumprimentou o grupo todo. Toda a gente murmurou uma espécie de "olá" e tentou não olhar para a Bíblia.
Eric tinha uma cerveja na mão e escondeu-a atrás das costas. Até mesmo Eric, Jamie era capaz de o fazer sentir-se culpado se estivesse bem perto dele. Tinham sido vizinhos em tempos, e Eric já ouvira as suas conversas antes. Nas costas dela, chamava-lhe "a Senhora da Salvação", numa referência óbvia ao Exército de Salvação. - Ela teria dado um bom general de brigada - gostava de dizer. Mas quando ela estava mesmo à sua frente, a história era outra. Na mente de Eric, Jamie tinha um acordo com Deus, e ele não queria deixar de estar nas suas boas graças.
- Como estás, Eric ? Não te tenho visto muito ultimamente. Disse isto como se ainda falasse com ele todos os dias.
Eric passava o peso de um pé para o outro e olhava para os sapatos, fazendo aquele seu ar de culpado. Não que isso lhe valesse de muito.
- Bem, não tenho ido à igreja ultimamente - disse ele.
Jamie fez aquele sorriso brilhante:
- Bem, não faz mal, julgo eu, desde que não se torne um hábito.
-Não.
- Ora bem, já ouvi falar da confissão, aquela coisa quando os católicos se sentam atrás de uma cortina e contam ao padre todos os seus pecados - e era assim que Eric agia quando estava perto de Jamie. Por um segundo, pensei que a fosse tratar por "minha senhora".
- Queres uma cerveja? - perguntou Margaret. Acho que estava a tentar ser engraçada, mas ninguém se riu.
Jamie levou a mão ao cabelo, mexendo levemente no carrapito.
-Oh... não... Mas obrigada, de qualquer maneira.
Olhou diretamente para mim com um brilho muito carinhoso, e soube de imediato que estava metido em sarilhos. Pensei que me fosse pedir que nos afastássemos para conversar ou coisa parecida, o que para ser franco achava melhor, mas suponho que isso não estava nos seus planos.
- Estiveste realmente muito bem esta semana nos ensaios - disse-me. - Sei que tens muito texto para decorar, mas tenho a certeza de que vais conseguir decorá-lo todo não tarda nada.
E queria só agradecer-te por te teres oferecido como o fizeste. És um verdadeiro cavalheiro.
- Obrigado - disse eu, um pequeno nó formando-se no meu estômago. Tentei agir à maneira, mas todos os meus amigos olhavam para mim, a questionarem-se subitamente se eu lhes havia dito a verdade sobre Miss Garber me ter forçado para o papel. Esperava que não tivessem reparado.
- Os teus amigos devem estar orgulhosos de ti - acrescentou Jamie, anulando essa hipótese.
- Mas é claro que estamos - disse Eric, continuando a espicaçar-me. - Muito orgulhosos. E um bom rapaz, o Landon, oferecendo-se como voluntário.
Jamie sorriu para ele; depois, voltou-se de novo para mim, sempre da mesma maneira alegre.
- Também queria dizer-te que se precisares de alguma ajuda podes ir visitar-me a qualquer altura. Podemos sentar-nos na varanda como fizemos antes e ensaiar o teu texto, se precisares.
Vi Eric pronunciar as palavras "como fizemos antes" a Margaret. As coisas realmente não estavam a correr nada bem. Nessa altura, o buraco no meu estômago já estava tão grande como uma bola de boliche gigante.
- Não é preciso - murmurei, perguntando a mim mesmo como poderia escapar daquela situação. - Posso decorá-lo em casa.
- Bem, às vezes ajuda se houver alguém para o ler contigo, Landon - sugeriu Eric.
Eu disse-vos que ele me trairia, apesar de ser meu amigo.
- Não, a sério - disse-lhe - Decoro o texto sozinho.
- Se calhar - sugeriu Eric, sorrindo - vocês deviam era ensaiar em frente dos órfãos, quando já souberem o texto um potico melhor. Uma espécie de ensaio geral, sabem? Tenho a certeza de que eles adorariam ver a peça.
Quase se podia ver a mente de Jamie começar a tremeluzir à menção da palavra órfãos. Toda a gente sabia qual era o seu ponto sensível.
- Achas que sim? - perguntou.
Eric acenou com a cabeça com ar sério.
- Tenho a certeza. foi Landon que pensou nisso primeiro, mas sei que se fosse órfão, adoraria uma coisa assim, mesmo que não fosse exatamente a representação no palco.
- Eu também - ajudou Margaret.
Enquanto falavam, a única coisa em que eu conseguia pensar era naquela cena de Júlio César em que Brutus o apunhala pelas costas. Et tu, Eric?
- Foi idéia de Landon? - perguntou Jamie, franzindo as sobrancelhas. Ela olhou para mim, e eu podia ver que ela ainda estava com dúvidas.
Mas Eric não me ia deixar escapar do anzol assim tão facilmente. Agora que me tinha a estrebuchar no convés, a única coisa que lhe restava fazer era estripar-me.
- Gostavas de fazer isso, não gostavas, Landon? - perguntou. - Ajudar os órfãos?
Não era propriamente algo a que se pudesse responder que não.
- Suponho que sim - disse baixinho, olhando furioso para o meu melhor amigo. Eric, apesar das lições dadas por um explicador a que tinha de recorrer, teria dado um grande jogador de xadrez.
- ótimo, então, está tudo combinado. Isto é, se não te importares, Jamie. - O sorriso dele era tão doce que teria chegado para dar sabor a metade das RC Colas de todo o distrito.
-Bem... sim, suponho que terei de falar com a Miss Garber e o diretor do orfanato mas, se eles concordarem, penso que será uma ótima idéia.
E a verdade é que se podia perceber que ela estava realmente contente com aquilo.
Xeque-mate.
No dia seguinte, passei catorze horas a memorizar o meu texto, amaldiçoando os meus amigos, e perguntando-me como é que a minha vida tinha descarrilado daquela maneira. O meu último ano na escola secundária, decididamente, não estava a correr como eu imaginara, mas se tinha de representar para um grupo de órfãos, certamente não queria fazer figura de idiota.

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